Gal e o amor pelo Brasil

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 11/11/2022 - Publicado há 1 ano

Desde o dia 30 de outubro estou com vontade de escrever um texto terrivelmente ufanista.

Algo como “sou feliz por ter nascido brasileira, que país lindo, que alegria viver aqui, que orgulho de fazer parte do nosso sistema de ensino superior, quanta gente boa, quanta coisa boa junta!”. Me contive, pensando em todos meus amigos críticos e também em todas as muitas críticas a muitos aspectos da sociedade brasileira que abomino. Sim, sim: somos um dos países mais desiguais do mundo. Sim, nosso racismo deixa marcas por onde quer que olhemos. Sem falar no machismo, no classismo (ou aporofobia), na homofobia, nos traços autoritários.

Mas… é isso misturado com um monte de coisas boas, né? Não somos só o que temos de ruim. Ou, talvez: não necessariamente o que temos de ruim deve ser a característica principal a nos definir. Além disso (diria eu para meus amigos defensores da Internacional), ser nacionalista em um país que está na periferia do capitalismo não é o mesmo que ser nacionalista no centro. Há algo de gauche, de contracultura em se ter orgulho de ser brasileira.

Em meu diálogo imaginário com aqueles que censurariam meu desejo de derramar elogios sobre o Brasil, pensei ainda em mais argumentos. Lembrei do discurso de posse da primeira jurista negra indicada para a Suprema Corte dos Estados Unidos, Ketanji Brown Jackson. Ela disse assim, em abril deste ano: “Dediquei minha carreira ao serviço público porque amo este país, nossa Constituição e os direitos que nos tornam livres”. Ora, os EUA são um país com profundas desigualdades raciais e comportamentos racistas espalhados pela sociedade. Hoje e em sua história. E, no entanto, a primeira mulher negra a ser indicada para a Suprema Corte diz amar seu país. Fiquei pensando na declaração. A gente luta para melhorar aquilo que a gente ama. Ódio, desprezo, nojo, repulsa não estimulam desejos de mudança para melhor, estimulam afastamento do objeto nefasto. O amor é generoso, ainda que não cego para os problemas estruturais.

Sigo em diálogo imaginário com amigas concretas. Elas diriam: “mas… e os milhões de votos claramente depositados em um ser abjeto, em seu projeto autoritário? E os caminhoneiros fechando as estradas? E as pessoas pedindo intervenção militar, se manifestando (rezando?) em frente aos quartéis?”. Responderia eu que é preciso diferenciar o Bolsonaro – político repugnante – de seus eleitores. De acordo com o estudo da Isabela Kalil, que fez uma importante pesquisa antropológica em diversas manifestações da direita, há pelo menos 16 tipos de eleitores e apoiadores de Bolsonaro. Suas razões, seus valores e seus compromissos são diversos. Talvez porque o Lula venceu a eleição do dia 30 de outubro, talvez porque eu já esteja mais tranquila, estou conseguindo ver complexidade e ser generosa com os muitos milhões de eleitores do Bolsonaro. Acredito ser preciso estabelecer diálogo e pontes com uma parte deles. De qualquer forma, Lula venceu e temos na Presidência um espelho melhor para olhar.

Foi a morte de Gal nesta semana que me convenceu a sentar aqui na frente do computador e batucar estas palavras. Em meio à tristeza e à escuta de playlists com músicas cantadas por ela, voltei a pensar no Brasil. Uma sociedade que já produziu e produz cotidianamente as festas e as belezas que são feitas por aqui… tem que ter algo de bonito. A beleza não nasce da feiura. Somos um povo que tem uma face bonita porque já produzimos tanta boa arte juntos (além de uma bela Constituição Cidadã). Arquitetura, escultura, pintura, literatura, dança, cinema: cada uma delas tem uma infinidade de obras de brasileiras e brasileiros incríveis a serem lembradas. Não vou nem arriscar fazer uma lista de nomes porque qualquer lista seria injusta e muito incompleta. Mas a música… Ah, a nossa música! Chico Buarque, Tom Zé, Bethânia, Caetano e Gil só para ficar nos mais próximos dela. Um país que tem a nossa música, o país em que nasceu e tornou a Gal possível: como não amar?


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