Jornalismo, verdade factual, pena, moral, perdão e Cuca

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 10/05/2023 - Publicado há 12 meses

Em seu livro Existe Democracia sem Verdade Factual?, o jornalista e professor Eugênio Bucci escreve sobre a verdade que deve ser buscada pelos jornalistas em seu duro trabalho de apuração cotidiano. Trata-se da verdade factual, “pequena, frágil, efêmera”, diferente das grandes verdades filosóficas, metafísicas, “que se pretendem transcendentes ou monumentais”.

A verdade que os jornalistas caçam diariamente são “um primeiro registro”, “um esforço precário” para se conhecer o que se passa no mundo, sendo “facilmente reconhecida e verificada por todos pelo uso de suas habilidades e faculdades de seres humanos comuns”. Esses fatos podem ser checados por serem razoavelmente objetivos e precisos. Eles nos ancoram na realidade. Descrevem um mundo comum e compartilhado e nos conectam à coletividade; servem de base para as decisões racionais, a serem tomadas na política e no sistema de Justiça. Sem respeitar os fatos, corremos o risco de viver em fuga, como covardes incapazes de lidar de frente com os desafios cotidianos.

A atualidade das redes sociais é marcada pelas crises dessa verdade factual e da objetividade jornalística, atropeladas pelas opiniões e disputas de narrativas interessadas. Nas últimas semanas, contudo, esse processo se inverteu, trazendo à tona as verdades objetivas que se mostraram fortes o suficiente para descortinar mais de 30 anos de equívocos e omissões, ligados a um dos principais dramas da sociedade brasileira, a violência contra a mulher.

A intrigante e cruel história envolvendo o técnico Cuca e outros três jogadores do Grêmio tinha fatos verificáveis e objetivos, que vinham sendo desconsiderados. Em 1987, os jogadores foram acusados de abusar de uma menina de 13 anos em Berna, na Suíça. Segundo investigações, ela foi com amigos ao quarto deles pedir uma camisa do Grêmio. Os amigos dela foram expulsos e a menina foi abusada, como ela contaria a um jornal suíço logo depois do crime. Três deles a seguraram e um quarto a estuprou. Depois, houve um segundo estupro, conforme ela narrou ao jornal.

Cuca era um dos abusadores, o que foi materialmente comprovado durante o julgamento, dois anos depois. Segundo publicou o jornal suíço que cobria o julgamento, “o relatório forense mostrou vestígios dos dois jogadores Alexi e Eduardo no corpo da menina”. Alexi é o nome de Cuca. O exame foi feito pelo Instituto de Medicina Legal da Universidade de Berna, segundo relatou depois o advogado da vítima.

Cuca tinha uma carreira de sucesso no futebol. Vinha conseguindo driblar eventuais polêmicas em torno de seu passado, tentando esquecê-lo e silenciá-lo. Depois da repercussão em torno da chegada ao Corinthians, Cuca voltou a negar sua participação no crime, dizendo que não se lembrava de detalhes, como se fosse algo banal, possível de ser esquecido. Afirmou que não havia sido reconhecido pela vítima, sendo desmentido depois pelo advogado dela. Também afirmou que tinha sido julgado à revelia, o que era mentira, já que o Grêmio tinha enviado um advogado para defendê-los.

As verdades factuais foram sendo resgatadas por jornalistas como Juca Kfouri e Adriano Wilkson, e o depoimento do acusado se tornou insustentável. Ele achou melhor pedir para sair do clube, mas antes ameaçou de processo jornalistas que distorcessem os fatos sobre o caso, como se ele próprio não fosse o responsável pelas distorções.

Apesar de todo o drama em torno da história, o episódio rompeu as paredes da panelinha masculina do futebol, por anos tão fechada. Nos diversos programas esportivos, diversas vozes de mulheres se indignaram com o silêncio e a omissão tão duradouros. As jogadoras do time feminino do Corinthians protestaram contra a contratação, assim como as torcedoras corintianas, que encheram as redes sociais de protestos. Mais de 30 anos de omissões começavam a ser passados a limpo, em um dos países do mundo com as mais altas taxas de violência contra a mulher. A partir daquele momento, não haveria mais retorno.

No podcast Assunto, Julia Dualibi e André Rizek conversaram sobre os erros e vacilos da imprensa, lembrando de cenas inaceitáveis nos dias de hoje, como a festa feita pelos torcedores do Grêmio na recepção aos jogadores quando chegaram ao Brasil, depois de 28 dias detidos, nos anos 1980. Falaram sobre a condescendência preguiçosa da imprensa esportiva ao aceitar a versão dos acusados, sem checar o que era verdade. O sigilo de 150 anos em torno do processo dificultava a apuração, mas os fatos acabaram emergindo. Entrevistas antigas com os acusados foram resgatadas, revelando o descaso em relação ao que fizeram e com o sofrimento da menina que, soubemos depois, por seu advogado suíço, chegou a tentar o suicídio.

A jornalista Flávia Oliveira trouxe dados sobre o problema da violência contra a mulher no Brasil para dimensionar a gravidade do silenciamento. Casos anteriores de estupros, como os que envolveram os jogadores Robinho e Daniel Alves, foram resgatados para mostrar que a pusilanimidade permite que o comportamento abusador seja recorrente.

Diversas verdades objetivas, somadas e costuradas, foram aos poucos compondo um grande painel para revelar parte da história do machismo no futebol e na sociedade brasileira, que não tinha mais espaço diante do fortalecimento do discurso das mulheres na sociedade e sua participação cada vez maior em rodas de debates que antes ficavam restritas aos homens. Do silêncio e da omissão rompeu uma reflexão necessária sobre nossa cultura violenta e suas transformações recentes.

Entre os torcedores do Corinthians, e até entre os jogadores do time, houve os que reclamaram de uma punição eterna, que impediria o treinador de trabalhar para sempre. Outros lamentavam o fato do time se envolver em questões políticas, que iam além do perde e ganha dos jogos de futebol. De fato, do ponto de vista penal, não havia mais o que fazer, considerando que os jogadores acusados de estupro já tinham sido condenados na Suíça – e não cumpriram pena por estarem no Brasil. A pena acabou expirando. Os aspectos penais do processo, realmente, não importavam mais. Existe, contudo, uma questão moral que permanece em aberto.

Assumir a verdade objetiva dos fatos, dizer-se arrependido e pedir desculpas são condições necessárias para o perdão. A verdade tem o poder de restaurar, a partir do momento que aparece, gera arrependimento e pedido de desculpas. É esse o princípio que tem norteado comissões restauradoras de eventos históricos traumáticos, como ocorreu no pós-Apartheid, na África do Sul, e que se buscou fazer no Brasil, sem sucesso. O fracasso da Comissão da Verdade brasileira decorreu do fato das Forças Armadas, principal envolvida nos crimes da Ditadura, nunca ter se disposto a assumir seus erros.

Cuca e os jogadores do Grêmio também se recusaram a assumir os fatos. O treinador, inclusive, foi enfático ao dizer que não tinha motivos para pedir desculpas, porque era inocente. Difícil, contudo, acreditar na sua defesa, diante dos fatos objetivos que vieram à tona. Ele se diz um devoto de Nossa Senhora da Aparecida. Leva religião a sério. Na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e no filme baseado no livro, o perdão de Nossa Senhora e seu compadecimento com os pecadores exigem, acima de tudo, arrependimento sincero diante dos erros, o que implica admitir as verdades factuais do que ocorreu, em todas as suas dimensões.

A mentira preserva o orgulho e a soberba. Nem Cuca nem os demais envolvidos no caso assumiram ou pediram perdão sobre o que aconteceu. Pelo contrário. Durante décadas, seus relatos confundiram a opinião pública. Sem a verdade, não pode existir arrependimento nem perdão. Sem verdade, não podemos corrigir os erros. Sem verdade, acreditamos em mentirosos e não enxergamos as injustiças. A verdade factual nos mantém conectados a um mundo comum e por isso, sem ela, a Democracia corre riscos. Sem a verdade factual, ficamos sujeitos a perder a referência e sucumbirmos em meio ao caos.

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