De repente, por dois dias, uma sociedade em choque se confronta com sua índole homicida

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 10/10/2023 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 17/10/2023 as 16:31

Escrevo há muito tempo sobre homicídios e violência, um tema desagradável. Sei que a maioria das pessoas prefere evitar o assunto para que a vida se torne suportável. É uma omissão compreensível. O País chegou a ter mais de 65 mil homicídios em 2017. Se pensássemos de forma mais detida sobre o tema, talvez muitos evitassem até mesmo sair de casa, paralisados pelo medo. Mesmo com números de guerra, os moradores das cidades aprenderam a empurrar o drama para um canto obscuro da mente, um subterfúgio para suavizar a realidade.

De repente, contudo, quando menos se espera, a violência rompe as barreiras de contenção e obriga uma sociedade em choque a se confrontar com a realidade. Foi o que aconteceu na semana passada no Rio de Janeiro, em plena orla da Barra da Tijuca, em frente a hotéis de luxo, quando três médicos paulistas e um baiano foram atingidos por atiradores que saltaram do carro para executá-los.

Três morreram, entre eles o irmão da deputada Sâmia Bonfim, parlamentar que sofria ameaças de morte. As vítimas estavam em um congresso internacional de ortopedia. Celebravam o encontro na Cidade Maravilhosa, tomando cerveja, sorridentes por estarem no Rio. Nenhum deles se imaginava como alvo, mas os assassinos foram buscá-los, certeiros. Seria possível que os homicidas agissem por motivações políticas, como fizeram com Marielle e Anderson? Mataram um grupo de médicos para se vingar de rixas políticas impulsionadas pelo bate-boca nas redes?

A região de Jacarepaguá vinha testemunhando confrontos crescentes desde o começo do ano, que levaram as taxas de homicídios na região a explodirem por causa de rivalidades entre milicianos e o Comando Vermelho e seus sócios de outro grupo de milicianos. Os sustos nestes conflitos, contudo, eram pontuais; não impediam uma cidade acostumada a tiroteios a seguir sua rotina. As mortes dos médicos, contudo, estavam fora do padrão, não faziam sentido e fugiam da ordem natural das coisas. Por isso, se revelaram insuportáveis por mostrarem uma sociedade fragilizada. Causaram o impacto de desfibriladores acionados sobre um corpo apático.

Por alguns instantes, a sociedade parecia acordar e reagir, como se despertasse do coma e passasse a enxergar a realidade degradante dos que mandam no Rio. Os riscos políticos e sociais de se viver entre assassinos armados, que comandam os bairros com seus fuzis, arrogantes, com os bolsos cheios de dinheiro, influência política e econômica crescentes. Nesse cenário, a perversidade fica sempre à espreita, assim como a imprevisibilidade e a degradação. A morte dos médicos deixava mais nítido os riscos de viver em uma sociedade entre instituições que não funcionam e passam a ser controladas por grupos armados em disputas. Um alarme parecia tocar em som alto, insuportável, a ponto de paralisar o Rio e o Brasil, que passaram o dia do crime com olhos arregalados nas telas.

No Brasil urbano, normalmente, os homicídios costumam causar menos indignação do que os roubos. As razões, mesmo que não sejam faladas abertamente, estão presentes nas entranhas. As pessoas assassinadas, assim como as mulheres vítimas de abusos sexuais, são, muitas vezes, consideradas culpadas da violência que sofrem, como se provocassem o autor para o desfecho trágico. De acordo com essa percepção, morre quem provoca, o que torna o crime uma ação controlável. Para não morrer assassinado, basta não se envolver com as pessoas erradas. É diferente dos casos de roubos, em que o ladrão age indiscriminadamente, tornando o crime aleatório e imprevisível, uma loteria macabra que faz com que todos se enxerguem como alvos em potencial. O que torna a violência insuportável é o medo de sofrê-la em um contexto sem regras, imprevisível e marcado pela desordem.

Os homicídios passaram, inclusive, a serem defendidos como instrumentos eficazes para a promoção da ordem. Dependendo de quem morre e de quem mata, longe de ser associados ao caos, chegam a ser celebrados como uma solução para organizá-los. A morte de um suspeito de crime, por exemplo, conforme essa mentalidade, além de eliminar uma ameaça em potencial, ensina aos demais o que ocorre entre os que desobedecem às regras. Quando a vítima carrega os estigmas que a condenam – como ser homem, jovem, negro e morador de bairros pobres – seu assassinato é assimilado com tranquilidade, e até mesmo visto com alívio por eliminar do cotidiano pessoas consideradas potencialmente perigosas.

Na história do Rio de Janeiro e do Brasil, diversos matadores confessos foram celebrados como heróis, casos de policiais como Milton Le Cocq e Mariel Mariscott, que lideraram os esquadrões da morte do Rio; Sérgio Paranhos Fleury, que comandou o esquadrão da morte paulista e se tornou peça-chave da ditadura militar nas torturas e eliminações do período. Comandantes sanguinários da Rota e líderes de massacres em presídios. O discurso em defesa desses assassinatos passou a eleger os simpatizantes dos homicídios. As caveiras se tornaram símbolos populares entre as forças policiais, ícone dos batalhões militares de operações especiais. Caveirão é o nome dos tanques de guerra que entram nas favelas para, muitas vezes, produzir diversas mortes em bairros pobres. As operações policiais de vingança se institucionalizaram no País, entre as diversas polícias estaduais, como se essas mortes pudessem ensinar a população a respeitar a corporação.

Essa apatia e a tolerância cotidiana aos assassinatos, contudo, impediram a sociedade de dimensionar os impactos políticos e sociais da violência para a coletividade. Quando o Estado abre mão do monopólio do uso da força na defesa dos direitos individuais – uma conquista civilizatória das instituições democráticas modernas – a tendência é retrocedermos para uma disputa arcaica entre grupos armados na luta por poder. Foi esse o caminho do retrocesso trilhado pelo Rio de Janeiro, que se alastra a outros Estados. A fragilidade do Executivo e das instituições estaduais ofereceu as brechas para o fortalecimento dessas tiranias com fuzis, que se infiltraram no Estado, formaram as milícias, passaram a disputar poder com as facções de tráfico de drogas, promovendo alianças e rompimentos que determinam o dia a dia tenso dos bairros que eles comandam.

Todo esse drama parece ter ficado mais evidente na quinta-feira, dia 5 de outubro, com a morte dos médicos. Não era possível aceitar tamanha barbárie. A indignação e o despertar nacional, contudo, não duraram menos de dois dias. A reação do status quo foi rápida. As informações começaram a chegar, via polícia e imprensa. Não se tratava de desordem, imprevisibilidade, crueldade, prepotência, loucura; mas de um mal-entendido. Os assassinos haviam se enganado, o que era possível constatar na roupa que vestiam, na forma como chegaram. Eles buscavam um inimigo parecido com um dos médicos mortos.

As próprias quadrilhas assumiram o papel de prestar contas à sociedade. No dia seguinte, policiais bem-informados descobrem que os bandidos, que já matavam havia muito tempo no bairro, tinham assassinado quatro pessoas envolvidas com o engano que vitimou os forasteiros. Enviaram os corpos dos autores do homicídio de presente. O governador Claudio Castro foi às tevês falar grosso, como se tivesse algum controle sobre o quadro atual das coisas, que já escapa de suas mãos. Em menos de dois dias, contudo, diante do esclarecimento e do justiçamento bárbaro, a indignação parecia diminuir. Os assassinos de fuzis continuariam a mandar no Rio. O pacto velado estava presente nas entrelinhas. De agora em diante, redobraria o esforço para matar somente aqueles que podem morrer. E tudo seguiria como antes, até o próximo susto.
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