“Nós não somos donos da terra, nós somos a terra.”
Casé Angatu Xukuru Tupinambá
Há mais de 500 anos, as populações indígenas têm suas terras invadidas e suas culturas desrespeitadas, num complexo jogo de relações, conflitos e negociações. A posse da terra, desde os tempos coloniais, mostra-se como questão imediata. Embora o direito de posse esteja inscrito na Constituição de 1988, as áreas indígenas são usurpadas sistematicamente até os dias atuais; as demarcações nunca acontecem de fato; invasões de garimpeiros, do agronegócio e do crime organizado são as notícias mais frequentes, em particular nos quatro últimos anos, as ocorrências foram muitas – aqui vale a menção à crise humanitária que se abateu sobre os yanomamis.
Entre a extinção e a adoção de diferentes estratégias para sobrevivência, essas populações são acusadas de não serem mais “aqueles índios de 1500” e, por esse motivo, não seriam mais os povos originários, os primeiros nessas terras, bem como não teriam mais ligações com sua ancestralidade e cultura. A imagem “do índio” isolado nos confins da floresta amazônica não resiste à simples indagação: Como lidar com indígenas que transitam entre os aldeamentos e as grandes cidades? Essa imagem genérica do que seria “um índio” se coaduna com um projeto de Estado de longa duração (assimilar ou extinguir esses povos).
Sob esse aspecto, torna-se relevante pensar nas comemorações do mês de abril, em especial o dia 19, instituído em 1943, pelo Decreto-Lei no. 5.540, como o Dia do Índio, que somente neste ano foi alterado para Dia dos Povos Indígenas – parece ser uma mudança retórica, mas, com efeito, é o reconhecimento da pluralidade indígena, isto porque a recusa do fato de que existem diversas etnias e múltiplas culturas é, também, negação do território e de políticas públicas que assegurem os modos de ser e estar no mundo dessas populações.
Nesse embate que envolve território, pertencimento e identidade, a arte é vista como tática eficiente. E, como dizia Jaider Esbell, artista, curador, escritor e educador (encantado em 2021), “fazemos política de resistência declarada com a arte em contexto contemporâneo”. E, desde 2013, quando organizou o I Encontro de Todos os Povos, Esbell assumiu um papel central no movimento de consolidação da produção artística indígena no cenário brasileiro.
Assim, a arte indígena tem sido tema frequente nas rodas acadêmicas, nas revistas especializadas, nas galerias, museus e grandes exposições – ainda repercute entre nós o impacto da última edição da Bienal de São Paulo, apelidada de “Bienal indígena”, em 2021, quando foram convocados artistas, tais como, Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uýra Sodoma e Gustavo Caboco.
Ou, ainda, a programação do Masp, neste ano, dedicada às diversas histórias e à abordagem da complexidade de materiais, culturas, cosmologias e filosofias indígenas. Nesse semestre, por exemplo, o Masp apresenta as mostras Carmézia Emiliano: árvore da vida, curadoria de Amanda Carneiro, e MAHKU: mirações, com curadoria de Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida (a primeira segue até 10 de junho e a segunda se encerrou no dia 4 de junho). Somem-se ainda, a exposição individual Alicerce, de Andrey Guaianá Zignnatto, no Museu AfroBrasil (aberta em 29 de abril) e a coletiva Intersecções: negros (as) indígenas e periféricos(as) na Cidade de São Paulo (até 28 de julho e já discutida aqui no Jornal da USP). Inclui-se nesse circuito, a exposição Chico da Silva e o ateliê do Pirambu, que esteve em cartaz na Pinacoteca (até 28 de maio).
Intencionalmente ou não, a produção e circulação das produções artísticas indígenas sempre esbarram no silêncio da história oficial da arte. Nesse ponto, há certa convergência entre a arte indígena e a arte afro-brasileira – ambas são colocadas costumeiramente entre o artesanato e o primitivo, lugares destinados a todos aqueles que não cabem na grande narrativa da História da Arte Ocidental.
Na construção de “uma história da arte brasileira” não é diferente. Lembre-se que o Modernismo era o contraponto entre as tendências europeias (especialmente, o cubismo, o surrealismo, o fauvismo, o expressionismo, o construtivismo e o futurismo) e as origens brasileiras (negros e indígenas). Sob essa constatação, a arte indígena quer protagonismo; quer questionar a narrativa do colonizador; quer contar as próprias histórias, e, desse modo, ela se entrelaça às pautas políticas contra as tentativas de apagamento e de negação de direitos.
Nesse sentido, alguns artistas pensam na chamada Arte Indígena Contemporânea (AIC), termo originalmente criado por Jaider Esbell, não como modernista nem tampouco antimodernista. Isto porque essas produções não se alinham aos paradigmas da arte ocidental e, menos ainda, à concepção do tempo dito contemporâneo. E faz muita diferença afirmar-se como arte indígena contemporânea ao invés de arte contemporânea indígena.
Acompanhando as discussões, percebe-se que, na verdade, ainda não há consenso sobre o nome Arte Indígena Contemporânea. Alguns artistas e estudiosos pensam que o “C” mais adequado seria o de “Cosmopolítica”, ou seja, um modo de contar suas histórias e reviver suas ancestralidades através da arte, enfatizando, assim, que existe um deslocamento nos campos da arte, da estética e da política.
Já a artista e curadora Naine Terena, por exemplo, em artigo na Revista Zum, nos auxilia no entendimento das questões abordadas pelas produções contemporâneas. Para ela, esses trabalhos trazem relações com a tentativa de extermínio das populações indígenas, a integração dos povos a partir da luta contra o apagamento das culturas e o vigor desta postura de valorização das identidades a partir da Constituição de 1988.
No fundo, esse processo pode ser resumido à presença indígena, isto é, à ideia de se afirmar através de um discurso artístico denso e cheio de potencialidades. E isto é ato de resistência, de enfrentamento ao processo colonial. É também a confirmação de estéticas, identidades e ancestralidades que não se adequam ao projeto moderno ou pós-moderno forjado para o Brasil.
Para além de tudo, destaca-se que a produção artística atual em suas diversas abordagens traz aspectos essencialmente contemporâneos, ou seja, lidam com os problemas e os valores dos nossos dias. Em Manaus, por exemplo, o biólogo Emerson Munduruku desenvolve o projeto Mil Quase Mortos, que usa a arte como ferramenta de preservação do meio ambiente. Nas suas apresentações, a drag queen Uýra Sodoma toma seu corpo e performa nas zonas periféricas e nos igarapés da cidade, assinalando, sobretudo, os impactos da poluição.
Outros fatores que ligam a produção indígena ao tempo contemporâneo são a ligação da vida em comunidade e o zelo pela terra. A noção de que “somos a terra”, acima de tudo, envolve lutar pelo direito à vida (não somente a do homem, mas também a dos animais e plantas). De contemporâneo, tem-se ainda a natureza múltipla, ativa, participante e coletiva desta arte – então, reforça-se aí o conceito de coletividade.
Como observadora, resta-me dizer ainda que a arte indígena atual é profundamente ativista e identificada pelo protagonismo de seus criadores e pensadores.
Tem-se muito o que aprender com eles.
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