Relatos recentes na imprensa e informações de bastidores indicam que o governo federal não desistiu da ideia de fundir a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apesar de a comunidade acadêmica, científica, e o próprio Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) serem frontalmente contrários à iniciativa.
“Não há justificativa lógica para juntar duas agências que têm papéis distintos e independentes de atuação”, argumenta o professor Marcio de Castro Silva Filho, pró-reitor adjunto de Pós-Graduação da USP e presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação (Foprop). “A comunidade científica é amplamente contrária a essa fusão porque entende que o desenho atual do sistema deve ser mantido e aperfeiçoado, e não desconstruído.”
Em entrevista ao Jornal da USP, Silva Filho alerta para a necessidade urgente de resgatar a função primordial do CNPq, que sempre foi a de financiar a pesquisa científica no Brasil. A agência teve seu orçamento de fomento reduzido drasticamente nos últimos anos, criando uma falsa impressão de que ela é apenas uma pagadora de bolsas de pós-graduação (que é uma atribuição primordial da Capes). A proposta do governo para 2020 praticamente acaba com o orçamento de pesquisa do CNPq, preservando apenas os recursos para bolsas, e reforçando ainda mais essa anomalia — conforme revelado nesta reportagem. “Não é enfraquecendo uma agência que vai se justificar a fusão com outra”, ressalta Silva Filho.
Especialista em genética molecular de plantas, Silva Filho é professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, presidente da Sociedade Brasileira de Genética (SBG), pesquisador 1A do CNPq e membro do Conselho Superior da Capes, onde já atuou também como diretor de Relações Internacionais e diretor de Programas e Bolsas no País.
Por que essa proposta de fusão Capes-CNPq não é uma boa ideia, na sua opinião?
Acho que a pergunta principal, na verdade, é a quem interessa isso? A comunidade científica é amplamente contrária a essa fusão porque entende que o desenho atual do sistema deve ser mantido e aperfeiçoado, e não desconstruído. O ponto-chave é que as duas agências têm missões claramente distintas e específicas, num sistema que vem operando com sucesso desde a década de 1950. É verdade que, com o passar do anos, a Capes passou a entrar em algumas ações do CNPq, e o CNPq passou a entrar em algumas ações da Capes; mas isso é perfeitamente ajustável. O importante é que cada agência tenha a sua missão respeitada, preservada, e sobretudo ampliada, com financiamento adequado, para que a gente possa superar os vários desafios que o Brasil enfrenta. Não adianta juntar duas coisas que têm funções distintas, sob um falso pretexto de economia de recursos.
Não seria possível juntar as duas agências, porém preservando suas funções, com equipes mais enxutas? Isso é factível?
As duas agências têm um gasto com pessoal irrisório, pelo tamanho que têm e o papel que elas desempenham. A Capes, por exemplo, trabalha com a comunidade científica — seus avaliadores e consultores são todos pesquisadores da comunidade, que trabalham de graça para a agência. Ela tem um quadro relativamente enxuto e gasta menos de 5% do seu orçamento com pessoal; então não há lógica em dizer que a fusão traria algum tipo de economia ou ganho de eficiência. São agências distintas, que atuam de forma distinta. Vai juntar um navio com um submarino para fazer um híbrido? Não tem como.
Por que, então, o governo insiste nessa ideia?
Há muitas divergências dentro do próprio governo com relação a isso. O ministro do MCTIC (Marcos Pontes) e o presidente do CNPq (João Luiz Figueiras de Azevedo) já se manifestaram publicamente contra a fusão; então fica claro que não há uma posição de governo consolidada sobre o assunto. Dentro do MEC, cabe um questionamento ao ministro: por que eles querem isso? Qual é a justificativa? Vão dizer que as duas agências fazem a mesma coisa, mas não é verdade. Minha impressão é que o MEC quer aumentar sua influência sobre a área de ciência e tecnologia, e isso é muito perigoso, por conta das pessoas que estão lidando com esse assunto dentro do ministério.
Se houver uma fusão, mas as agências ficarem dentro do MCTIC, em vez do MEC, tudo bem?
De jeito nenhum. No início do governo surgiu essa ideia de que a Capes iria para o CNPq, porque o ministro (Marcos Pontes) era muito próximo do presidente, e a comunidade na hora falou que “não”, que não era para juntar nada em lugar nenhum. O MCTIC não sabe trabalhar com pós-graduação e o MEC não sabe trabalhar com pesquisa científica. Volto a dizer: são funções distintas; não dá para abraçar as duas coisas.
Quais são as melhorias que poderiam ser feitas no sistema? Existe uma certa sobreposição de funções que precisa ser resolvida?
O CNPq tem hoje uma parte de seu orçamento reservado para bolsas de mestrado e doutorado que são concedidas aos programas de pós-graduação – o que é, essencialmente, uma função da Capes. Mas o presidente do CNPq já sinalizou que esse procedimento vai mudar, e que essa oferta de bolsas aos programas já está com seu ciclo encerrado. As bolsas agora estarão vinculadas a editais do CNPq e projetos de pesquisa, resgatando o que o CNPq fazia no passado. A Capes, por sua vez, começou a fazer editais de pesquisa — por exemplo, esse edital recente para financiamento de pesquisas sobre o derramamento de óleo no Nordeste —, o que é uma função do CNPq. Por isso é tão importante a recomposição orçamentária do CNPq, para que cada agência possa se ater à sua missão original.
De fato, se você olha para o orçamento do CNPq hoje, os recursos para fomento à pesquisa são tão reduzidos que ele parece ser uma agência de bolsas.
Exatamente; e você não pode tomar decisões com base nesse cenário, que é artificial. Até uns 15 anos atrás, a Capes tinha um orçamento praticamente igual ao do CNPq; hoje ele é quatro vezes maior. O CNPq precisa recuperar sua missão. Esse orçamento enfraquece a agência e torna-a mais vulnerável ao discurso da fusão.
O que fazer para mudar esse cenário?
Acho que ficamos muito tempo pregando para os convertidos, conversando só entre nós mesmos. Precisamos dialogar mais com a sociedade, com a imprensa e com o Congresso Nacional, para mostrar a importância da ciência para o desenvolvimento do País, e o papel que cada agência tem dentro desse sistema. A palavra final sobre a fusão caberá ao Congresso, então precisamos dialogar com ele.