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Relação e escrita de alunas de Benedita da Trindade, primeira professora pública da cidade imperial de São Paulo - Fotos: Arquivo Nacional e Arquivo Público do Estado de São Paulo

Criação de magistérios públicos incentivou participação feminina na educação

Estudo desenvolvido na USP demonstra processo histórico das instituições e influência da primeira professora de São Paulo na presença de mais mulheres na área

 22/07/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 05/08/2022 as 10:18

Crisley Santana

Logo após declarar independência, uma das preocupações do governo imperial no Brasil foi a educação. Os espaços públicos voltados a esse fim eram majoritariamente masculinos. O cenário só começou a mudar em 1827, com a criação da chamada Lei Geral, que instituiu a criação de escolas de primeiras letras — ensino fundamental da época — em todas as províncias do império. A partir da lei, então, abriu-se a possibilidade de as mulheres lecionarem.

No ano seguinte, a província de São Paulo, hoje estado, abriu um concurso para que professoras pudessem se candidatar, originando os magistérios públicos femininos na região. É o que demonstra a tese Invenção do magistério público feminino paulista: Mestra Benedita da Trindade do Lado de Cristo na trama de experiências docentes (1820-1860), da professora e historiadora Fabiana Munhoz.

Fabiana falou ao Ciclo22 sobre a criação das instituições públicas femininas e como a trajetória da professora Benedita da Trindade do Lado de Cristo, primeira professora pública da província de São Paulo, influenciou a entrada de outras mulheres na educação. 

Benedita foi aprovada no concurso para o magistério e lecionou até 1856, ano de sua aposentadoria. Entre as aulas, e como a lei instituiu, a professora ensinava sobre como ler e escrever, além de operações matemáticas e doutrina cristã. 

Algo que se destacou na trajetória da docente, segundo a pesquisadora, foi a ausência de ensino sobre “prendas domésticas”, uma disciplina sobre costura e bordado que a lei exigia para a instrução feminina. “Ela foi repreendida repetidas vezes por conta da ausência desse saber, que era considerado necessário às mulheres porque se pensava muito numa formação voltada para a esposa, a mãe”, disse Fabiana sobre o contexto da época.

Estudo de Fabiana Munhoz demonstra que Benedita tinha uma autorização do presidente da província para não lecionar prendas domésticas - Foto: Arquivo pessoal

O estudo demonstra que Benedita tinha uma autorização do presidente da província para não lecionar sobre o assunto. O motivo pela opção da professora é incerto. 

“As hipóteses são de que ela realmente não dominasse, a costura, o bordado, porque isso [a disciplina prendas domésticas] só foi aparecer na criação dos magistérios femininos, era uma coisa nova. Então ela tenta manter essa tradição dos saberes escolares. Não dá para a gente afirmar que ela estava se contrapondo a ensinar”, afirmou a pesquisadora.

Com o tempo, a lei passou a exigir que as professoras demonstrassem conhecimentos em prendas domésticas para serem aprovadas nos concursos. 

Confira no player a seguir um vídeo da pesquisadora comentando sobre a tese.

Mais mulheres na educação

Cerca de 600 estudantes foram ensinados por Benedita da Trindade, conforme o estudo demonstrou. A maioria dessas estudantes vinha de famílias das classes abastadas, relatou a pesquisadora. “Tinha muitas alunas filhas de militares, de médicos. Algumas tinham irmãos que estudavam na Faculdade de Direito.”

Apesar da desigualdade no acesso à instrução, o estudo indica que a partir da criação dos magistérios femininos, o número de mulheres alfabetizadas cresceu, e com isso elas alcançaram mais posições na área da educação. 

“Isso foi muito importante para abrir a profissão para as mulheres. Em 1846, a gente tem a Lei Provincial da Instrução Pública de São Paulo, que leva a uma ampliação do número de cadeiras femininas, então isso cresce muito”, indicou Fabiana.

Para além da entrada na educação, a escolarização possibilitou a participação e a ocupação feminina de outros espaços. “As mulheres se escolarizando, sendo alfabetizadas, puderam reivindicar também participação política, além de ampliar as possibilidades de atuação profissional e de participação pública”, destacou Fabiana.

Anúncio de abertura da aula de Benedita da Trindade publicado em O Farol Paulistano (24/05/1828, p. 470) - Fotomontagem: Jornal da USP/Hemeroteca da Biblioteca Nacional

A pesquisadora e a pesquisa

Fabiana Garcia Munhoz é professora, historiadora e ceramista. Sua tese de doutorado contou com bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). A pesquisa, conforme relatou a historiadora, foi feita com fontes impressas e digitais.

“Pesquisei muito a documentação do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que tem séries incríveis sobre a instrução pública, a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Eu conseguia buscar o nome das professoras que eu estava investigando e quando encontrava era aquela alegria, porque a gente tem muito poucos registros em relação à trajetória das mulheres”, disse Fabiana sobre a dificuldade em encontrar arquivos públicos que demonstrem a trajetória de vida de mulheres que viveram no século XIX, como Benedita Trindade. 

Além dos arquivos, a pesquisadora comenta que documentos como certidões de batismo e livros de viajantes e memorialistas foram usados no estudo. A importância de um estudo como esse para ela está em entender o processo histórico por trás dos fatos atuais. 

“Houve todo um processo das mulheres se apropriarem desse espaço, então não vamos desvalorizar isso porque parece que isso é um pouco desvalorizado no nosso momento. Compreender isso é importante para perceber o quão revolucionário foi as mulheres se apropriarem do magistério enquanto uma profissão e usarem esse espaço para garantirem o direito à educação, que proporcionou atuação em outras profissões”, afirmou.

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