Da tradição conservadora à revolução da diversidade: a “nova velha” Faculdade de Direito da USP

Considerada uma das mais tradicionais instituições de ensino do Brasil, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco caminha para seu bicentenário com inédita presença de pessoas e projetos que fomentam a diversidade e inclusão

 07/08/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 12/04/2024 às 13:41

Texto: Gustavo Roberto da Silva *
Arte: Carolina Borin **

Auditório Nobre da Faculdade de Direito da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Fundada em 1827, a Faculdade de Direito (FD) da USP foi frequentada durante muitos anos pelas elites de todo o País. Entre filhos de políticos, grandes proprietários de terra e barões do café, nove dos 12 presidentes civis da Primeira República brasileira passaram pelo Largo São Francisco. Partindo deste cenário, após quase 200 anos de sua fundação, pode-se dizer que a faculdade vive uma revolução.

“Grande transformação, mudança sensível de qualquer natureza, seja de modo progressivo, contínuo, seja de maneira repentina.” Assim é descrito um dos significados da palavra revolução pelo dicionário Oxford Languages. A grande transformação não é exclusividade da FD, que é mais uma unidade que reflete o novo momento da Universidade.

Em 2023, a USP registrou o maior porcentual histórico de ingressantes oriundos de escolas públicas (54,1%). Dentre esses estudantes, 27,2% se declaram pretos, pardos ou indígenas (PPI). Protagonista de reivindicações político-sociais em defesa dos direitos humanos e da democracia, o Centro Acadêmico XI de Agosto da FD foi impactado por esse novo cenário. Atualmente, o centro é constituído, em sua maioria, por pessoas negras. O mais antigo centro acadêmico do Brasil conta com Manuela Morais na presidência, apenas a segunda mulher negra a ocupar o cargo em 120 anos de história.

Augusta Nobre - Foto: Arquivo Pessoal

Em entrevista ao Jornal da USP, Augusta Nobre, membra da atual diretoria do Centro Acadêmico XI de Agosto, destacou a ocupação de pessoas negras nesses espaços. “O nosso movimento foi crescendo por conta da entrada dos estudantes negros, que foi possibilitada pelo sistema de cotas. Antes disso esses estudantes não se viam e não eram representados no Centro Acadêmico”, conta.

A primeira mulher negra a se tornar presidente do XI foi Letícia Chagas, antecessora de Manuela. Antes delas, a única pessoa negra a ocupar o cargo foi Oscarlino Marçal, em 1963, após vencer as eleições contra seu colega de turma, Michel Temer, ex-presidente do Brasil. 

Letícia em cerimônia estudantil na FD - Foto: Reprodução/Instagram

Revolução

“Se a gente for pensar que a 191 foi a primeira turma de cotas étnico-raciais e que a 194 foi a primeira turma que teve intersecção entre raça e classe no vestibular, com a questão da renda também sendo levada em consideração, a gente percebe uma maior abertura da Universidade para as questões raciais e sociais”, afirma Amanda Medina, atual diretora do XI de Agosto.

As estudantes ressaltam a importância da pressão estudantil para que a política de cotas fosse implementada, realizada pelas poucas pessoas negras que conseguiram ingressar na USP antes da política. Hoje, em uma quantidade progressivamente maior de estudantes negros, o XI de Agosto desenvolve e atua junto de projetos para fomentar a diversidade.

“Um projeto que começou na nossa primeira gestão, com a Letícia Chagas, foi ‘A história que a história não conta’. Foi pela força dele que conseguimos retirar o nome de um antigo professor que era declaradamente eugenista de uma das salas do prédio histórico. O projeto consiste na realização de um tour crítico com as novas turmas de ingressantes pela faculdade, mostrando as salas e quadros do prédio, revelando inclusive que vários homenageados eram senhores de pessoas escravizadas.”

Amanda Medina - Foto: Arquivo Pessoal

Letícia em cerimônia estudantil - Foto: Reprodução/Instagram

As estudantes contam que a mobilização conquistada por meio do projeto para a remoção da homenagem ao professor que expôs o corpo de uma mulher negra, também contou com as pessoas brancas que estavam ingressando na faculdade, que entendiam e concordavam com as reivindicações. Recentemente, o Centro Acadêmico promoveu um ciclo de formação sobre segurança pública, dando espaço para movimentos sociais como o “Mães de Maio” e o “Desencarcera”.

Outras iniciativas estudantis como coletivos, grupos de estudo e ciclos de formação foram citadas por elas. “Dentro da faculdade tem os coletivos negros Angela Davis e Quilombo Oxê, que inclusive tem um grupo de estudos étnico-raciais. Estamos sempre pautando esse tipo de discussão na Universidade“, conta Augusta.

Apesar das conquistas, as diretoras do XI de Agosto acreditam que o ambiente muito tradicional da FD dificulta ou atrasa maiores mudanças. “Os professores da ‘velha guarda’ da USP precisam ouvir os novos estudantes, principalmente os que fazem parte de algum grupo vulnerável. Se antes algumas coisas eram toleráveis, agora não são mais”, finaliza Amanda.

Basta acessar a universidade?

O aumento progressivo no número de estudantes PPI e de baixa renda é considerado um avanço relevante em direção a uma universidade mais inclusiva, mas para Ana Elisa Bechara, vice-diretora da FD, incluir é apenas o primeiro passo. Segundo ela, o grande desafio atual é a permanência.

“Não é só pôr para dentro. Eu diria que não é nem só pôr para dentro nem só conceder auxílio financeiro. A USP já faz isso e eu não conheço nenhuma outra universidade que tenha um orçamento tão grande destinado a auxílio financeiro, que ajuda muitos estudantes. Mas uma bolsa de R$ 800, na cidade de São Paulo, é suficiente para resolver a vida das pessoas? Não. A Universidade consegue substituir políticas de Estado? Não.”

Ana Elisa Bechara - Foto: Reprodução/FD

Ana Elisa Bechara - Foto: Reprodução/FD

Em relação à questão de desempenho acadêmico na FD, a vice-diretora afirma que não há qualquer distinção entre as notas de estudantes cotistas e não cotistas, mas entre eles, os cotistas precisam passar por muitas dificuldades para alcançar esses resultados. Os problemas vão desde moradia e alimentação, até transtornos desenvolvidos por conta do esforço e da cobrança pelo alto desempenho em um ambiente de vulnerabilidade.

Diante deste cenário, a professora exemplifica o desafio de um programa de permanência: “O aluno que é bolsista consegue minimamente comer e se vestir para ir à Universidade, mas a permanência significa uma série de outras coisas. Esse aluno não consegue frequentar os mesmos ambientes dos alunos que não pertencem a grupos em situação de vulnerabilidade. Ele consegue fazer um intercâmbio? Consegue se dedicar integralmente à pesquisa como outros alunos que não precisam trabalhar e ajudar a família?”, questiona Ana Elisa.

A professora também ocupa o cargo de diretora de Gênero na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e, apesar dos desafios, considera que a Universidade atesta muitos avanços em um período de apenas cinco anos (a política de cotas foi adotada em 2018). “Eu fico muito otimista, até por já ver resultados. A Universidade tem caráter elitista? Ainda tem, mas já está completamente diferente”, diz.

Eu vejo pela Faculdade de Direito o tipo de pesquisa que se faz, os diálogos com a sociedade são outros. A gente consegue responder muito mais às demandas sociais. Em um país tão desigual como o Brasil a Universidade tem um papel fundamental para o desenvolvimento social. Hoje a gente cumpre muito mais esse papel. Isso é não ser elitista! Estamos caminhando bem e nosso desafio é tentar destruir o elitismo com essas novas bases, olhando para a diversidade.”

Além das iniciativas da própria Universidade, como os auxílios financeiros e de alimentação, a doutora apoia uma iniciativa de endowment, um fundo financiado por ex-alunos intitulado Sempre Sanfran. O objetivo é distribuir os rendimentos dos recursos doados para projetos da FD que fomentem inclusão, cultura, pesquisa e extensão.

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Tradição x transformação

Prédio da Faculdade de Direito da USP - Fotos: Marcos Santos/USP Imagens

As mudanças são significativas no perfil dos estudantes de graduação, mas no cenário de docentes a diversidade ainda está longe de ser valorizada. Segundo Ana Elisa, atualmente a FD conta com somente um professor negro e apenas 27 mulheres dentre os mais de 200 professores. Apesar do anúncio da implementação de políticas afirmativas em concursos para docentes, o cenário não deve sentir grandes mudanças a curto ou médio prazo.

Para a vice-diretora, o tradicionalismo da faculdade está diretamente ligado à área do direito e traz uma herança conservadora. “O mundo do direito é um território de poder e tradição. A FD é o símbolo do direito no Brasil e isso é ótimo para o currículo, mas traz uma história ruim, no sentido de o direito ser um instrumento de poder muito excludente. É excludente porque regula a sociedade e faz isso de forma desigual. Na prática, o que o direito tradicionalmente sempre fez foi garantir espaços de poder”, afirma.

Na FD desde a graduação, a professora só percebeu que convivia com violências de gênero por meio de um projeto de extensão promovido por alunas em 2012. Na ocasião, as estudantes diziam não se sentir à vontade, e relatavam situações em que foram preteridas por homens, sem qualquer motivo aparente, em várias ocasiões durante a graduação. Para investigar a fundo, entrevistaram as professoras da faculdade com provocações, que remetiam aos episódios de desigualdade de gênero.

“Eu me lembro que comecei a chorar quando fui entrevistada. Foi a primeira vez que nós, professoras, começamos a perceber o que acontecia. São problemas que a gente via como pessoais de cada uma e não como um problema de gênero. Os resultados da análise foram um ‘tapa na cara’. Os professores e professoras interrompem apenas as mulheres na sala de aula, desvalorizam a opinião, fazem piada, só com as mulheres, nunca com homens.”

A partir da percepção da desigualdade de gênero presente na faculdade, as professoras se uniram para mudar o cenário. Regimentos foram alterados, obrigando a presença de mulheres nas bancas de avaliação e excluindo o período de gestação e licença maternidade para avaliação docente. Outras normas foram alteradas e diversas disciplinas sobre equidade de gênero foram criadas.

Nos tradicionais corredores da faculdade, repletos de quadros que homenageiam antigos professores, um novo projeto irá finalmente dar espaço para as mulheres. “Estamos criando uma galeria das professoras, com quadros homenageando todas. Em quase 200 anos de história, nós tivemos 57 mulheres docentes, contando as atuais. Hoje se você passar pela faculdade só tem quadro de homem e isso é ruim para as mulheres. Ter uma representação feminina mostra para as alunas que esse também é território delas”, ressalta.

Bustos e quadros, todos de homens, no Auditório Nobre da Faculdade de Direito da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A criação da PRIP é considerada fundamental para que cada vez mais iniciativas de diversidade ganhem força. “A mensagem que a Universidade passa é que não há como promover ensino, pesquisa e extensão sem inclusão e pertencimento. Uma Pró-Reitoria significa força política, equipara poderes com as outras. Significa que comandar a inclusão e pertencimento na Universidade tem a mesma importância que comandar a graduação”, conclui Ana Elisa.

Enquanto a tradição do direito resiste a algumas mudanças, os estudantes conquistam cada vez mais espaço e transformam a faculdade em um ambiente plural. Confira as iniciativas e grupos que fomentam a diversidade na Faculdade de Direito:

O Quilombo Oxê se descreve como o coletivo revolucionário de negros da FD e um dos projetos promovidos pelo coletivo é o Laboratório de Estudos Étnico-Raciais. A iniciativa é uma atividade de extensão oferecida dentro do Departamento de Direito do Estado da FD. Segundo seu último edital de inscrições, seu papel é suprir leituras e debates relacionados ao direito e questões étnico-raciais dentro do currículo do curso de Direito.

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O Coletivo Feminista Dandara existe desde 2006 na Faculdade de Direito da USP e é um espaço de estudo, debate e construção política que busca fortalecer a luta coletiva contra a violência de gênero. No eixo da extensão universitária, desde 2009, o Dandara participa, em parceria com várias organizações, da coordenação do curso de Promotoras Legais Populares.

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Vinculada ao Centro Acadêmico XI de Agosto, a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama é uma atividade de cultura e extensão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, criada em 2009. Segundo o site oficial, a clínica é uma iniciativa protagonizada por alunas e  alunos que, estudando em uma das instituições de ensino jurídico mais tradicionais do país,  incomodaram-se com a ausência, em sala de aula, de discussões sobre a realidade enfrentada por muitos brasileiros, sobretudo a realidade da população em situação de rua.

O grupo construiu-se com a proposta de oferecer formação crítica em direitos humanos. Para tanto, os estudantes buscaram se apoiar em novos métodos pedagógicos, alternativos ao currículo oficial da faculdade, além da promoção de diversas iniciativas que tinham por objetivo dar visibilidade e incidir na temática da população em situação de rua. Conheça os projetos da clínica em seus canais de comunicação.

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O objetivo do grupo é resgatar a história de pessoas negras que passaram pela faculdade e foram invisibilizadas. O grupo de pesquisa é orientado pela professora Ana Elisa Bechara, e coordenado pela pesquisadora Marina Lima Ferreira. A descoberta da história do primeiro bibliotecário negro do Brasil, que foi aluno na FD, inspirou a iniciativa.

“Eu cresci nessa faculdade e nunca tinha ouvido falar dessa história. Isso não pode acontecer! Então a gente criou esse grupo para levantar essa historiografia do negro, não só para identificar quem foram os docentes negros, mas também identificar os alunos que foram esquecidos ou embranquecidos”, conta Ana Elisa.

Divulgação do último edital para integrar o grupo.

O Angela Davis é um Coletivo Feminista Negro é composto por estudantes da FD que estão dispostas a promover a resistência e fortalecimento da luta da mulher negra. O coletivo surgiu em 2019 a partir da união de estudantes negras que sentiram a urgência de construir um ambiente que pautasse as necessidades e dificuldades enfrentadas por elas e outras estudantes.

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O Saju foi criado por estudantes em 2003, com os objetivos de pensar possíveis atuações para além da concepção tradicional de acesso à justiça, então limitada à ideia de assistência (que se dá, principalmente, por meio da representação de demandas judiciais). Espelhando-se na atuação de grupos existentes em outras universidades, os estudantes incorporaram a concepção de Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP) e o grupo passou a atuar principalmente em casos envolvendo a luta por moradia. 

Ao longo do tempo e à medida que o Saju ia se expandido, outras pautas foram incluídas à nossa atuação. Hoje, o grupo é credenciado como atividade de Extensão junto à Faculdade e é constituído por 3 frentes, Cidade, Cárcere e Tuíra (Povos Tradicionais) e já contou com a existência das frentes Trabalho, Cooperativas e Corpo (População LGBTQIA+).

 

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*Estagiário sob orientação de Antonio Carlos Quinto

**Estagiária sob orientação de de Simone Gomes


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