
Blog
Moradias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, são mais bem planejadas que as casas oferecidas pela Aeronáutica
Pesquisa de mestrado analisou parâmetros de conforto nas casas tradicionais dos quilombolas e nas agrovilas construídas pela Força Aérea Brasileira para a implantação de centro de lançamentos

Uma das agrovilas de Alcântara, visitada por Marília Amorim durante a pesquisa – Foto: Cedida pela pesquisadora
A população quilombola de Alcântara, no Maranhão, possui tecnologias de construção que são negligenciadas desde o surgimento do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que deslocou compulsoriamente mais de 300 famílias para vilas militares. É o que diz uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, que descreve como o conforto ambiental, sensação de bem-estar que um ambiente proporciona, é percebido pelos moradores de agrovilas e comunidades tradicionais da região.

Como o conforto ambiental trata de sensações, os parâmetros que o definem são relativos. Eles incluem desde a temperatura ambiente até as roupas que usamos, passando pelo metabolismo de cada pessoa – Ilustração: cedida pela pesquisadora
Alcântara é o município com a maior proporção de quilombolas do Brasil. As moradias das comunidades tradicionais são construídas e dispostas de forma a aproveitar as próprias condições climáticas da região, como a direção do vento, o ângulo da luz solar e o compartilhamento do espaço. Marília Amorim, que realizou a pesquisa, afirma que essa forma de viver tem papel fundamental na reversão das mudanças climáticas: “Se nós ouvíssemos mais essas pessoas que, de fato, entendem a natureza e não usam ela só como recurso, talvez a gente pudesse reverter o que está acontecendo no planeta”, diz a arquiteta.

Em meio às obras do Metrô, grupos se mobilizam pela memória do Bixiga
Arqueólogos, urbanistas e movimentos sociais reivindicam que a chegada do Metrô ao tradicional bairro paulistano não apague a história de um dos maiores e mais antigos quilombos urbanos de São Paulo
Intitulada Conforto ambiental nos quilombos de Alcântara/MA: uma abordagem sob a ótica dos moradores, a dissertação de mestrado teve orientação da professora Ranny Michalski e foi defendida em 2024. O tema da dissertação de Marília Amorim surgiu quando a pesquisadora leu o trabalho de doutorado do professor Carlos Burnett, Arquitetura como resistência: Autoprodução da moradia popular no Maranhão. Segundo Marília, esse tipo de pesquisa não é comum na arquitetura.
“Quando eu pesquisava conforto ambiental em área rural, só se falava sobre criação de animais, o que, para mim, demonstra uma certa desumanização”, afirma a autora da dissertação.
A história de Alcântara
Em meados do século 18, Alcântara era considerada uma das cidades mais prósperas do norte do Brasil. Sua riqueza vinha das plantações de algodão. Com a crise do produto, ao longo do século 19, os senhores de engenho que viviam na cidade abandonaram o local, enquanto os ex-escravizados e os indígenas permaneceram. A população negra se estabeleceu na região e fundou diversos quilombos. Hoje, 85% dos habitantes do município são quilombolas, segundo o Censo do IBGE de 2022.
Com a inauguração do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980, mais de 300 famílias quilombolas foram deslocadas de onde viviam e realocadas em agrovilas construídas pela Força Aérea Brasileira, que comanda a base de lançamento de foguetes. As novas moradias não foram construídas de acordo com a cultura e o clima locais e estão localizadas longe do mar, onde as comunidades tradicionais ficavam, e em terreno infértil. Ao longo dos anos, aconteceram diversos conflitos por território, que duram até os dias de hoje.
“Uma coisa que me deixou muito pensativa fazendo essa pesquisa e morando aqui em São Paulo foi quando encontraram vestígios do quilombo Saracura nas escavações do metrô. Tinha ali um quilombo grande, que foi soterrado pelo progresso. E eu fiquei com medo de que Alcântara se tornasse isso em algum momento. É exatamente a isso que os quilombolas de Alcântara estão resistindo”, adverte Marília Amorim.

As comunidades e o conforto ambiental
Guiada por Sérvulo Borges, líder do Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (Mabe), a pesquisadora visitou quatro comunidades: as agrovilas Peru e Pepital e as comunidades tradicionais Mamuna e Canelatiua.

A pesquisadora utilizou um sonômetro para medir a pressão sonora de diversos pontos ao redor das comunidades – Foto: Marília Amorim, pesquisadora
O primeiro passo foi medir a iluminação, a temperatura e a acústica locais, com base nas normas ABNT de arquitetura. Em seguida, Marília realizou um questionário, respondido por 60 moradores das comunidades, com perguntas sobre a percepção de cada um a respeito dos mesmos parâmetros que ela mediu com aparelhos.
O questionário coletou respostas que a autora descreve como esperadas. Nas moradias militares, os quilombolas relatam sentir frio e calor em épocas diferentes do ano, ao comparar com as comunidades tradicionais. Em nenhum dos locais as pessoas se sentem incomodadas com a entrada de vento pelas janelas e apenas os moradores de Pepital dizem que suas habitações são escuras demais.
Apesar de haver mais ruído de tráfego nas agrovilas, a maioria daqueles que responderam às perguntas não se sente incomodada com o barulho.
Marília Amorim também analisou os materiais das casas e a forma como elas estão organizadas. O único lugar em que a maior parte delas é construída com taipa é em Mamuna, que, de acordo com a especialista, “é uma casa que é mais fresca. Se a gente pensa no filtro de barro, é uma lógica parecida, que refresca um pouco melhor o ambiente que está dentro”. A comunidade respondeu sentir maior conforto térmico do que as outras.
A dissertação chama a atenção para a disposição das moradias. Nas agrovilas, elas têm delimitação de espaço, enquanto nas comunidades tradicionais, elas estão dispostas livremente, o que torna o ambiente mais coletivo. Apenas em Mamuna e em Canelatiua há áreas de convívio social embaixo de árvores, planejadas para que a sombra das plantas diminua o calor.
Por uma arquitetura menos importada

Em conversas com os moradores de Alcântara, a pesquisadora notou que estratégias de construção tipicamente utilizadas nas cidades, mas que trazem menos conforto ambiental, são usadas ou desejadas por alguns deles.
Um exemplo são as janelas de vidro, que reduzem a ventilação e aumentam a entrada de luz, o que aquece o interior das casas. Esse tipo de material segue modelos europeus de arquitetura e não é o melhor para países de clima quente.
Segundo Marília, ao construir um espaço, é preciso levar em conta as necessidades daqueles que vivem ali e suas culturas, que não necessariamente são as mesmas de países europeus e cidades grandes. Ela afirma que as agrovilas foram feitas a partir de uma lógica que não condiz com as necessidades dos quilombolas.
“A maioria das comunidades que visitei não tem calçamento de asfalto. E aí falo, será que o asfalto realmente seria a melhor opção? Porque lá a maioria das pessoas se locomovem a pé e andam de chinelo, e o asfalto é muito quente. Sem falar que, numa superfície mais lisa, o veículo tende a aumentar de velocidade. Em um lugar que tem poucas pessoas, talvez isso não seja desejável“, acrescenta.
A pesquisadora planeja voltar para as comunidades onde realizou o trabalho e conversar sobre os resultados de seu mestrado com os quilombolas. Caso eles concordem e sintam necessidade, ela diz estar disposta a ampliar a pesquisa.
Sobre os estudos de conforto ambiental, Marília Amorim comenta que “estudar sobre conforto ambiental para grupos sociais é algo que eu quero levar para a minha vida. Não quero que pare aqui, porque acho que não é uma discussão que tem que ser parada aqui. Até porque, pelo que eu vi, ela não tinha nem sido iniciada”.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles

A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.