Argumento fiscalista sobre exportação no século 19 ignora realidade da escravidão

Em debate ocorrido durante o 32º Simpósio Nacional de História, pesquisador da USP buscou demonstrar as limitações de uma história econômica que não olha para as relações sociais

 10/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 08/01/2024 as 11:16

Texto: Silvana Salles

"Uma senhora de algumas posses em sua casa" de Jean-Baptiste Debret no século XIX - Gravura: Domínio público

Dados históricos têm o potencial de disparar muitos debates sobre o presente. Em maio deste ano, por exemplo, o economista Samuel Pessôa citou as conclusões de um artigo acadêmico assinado pelo também economista Thales Zamberlan Pereira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), para criticar a decisão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criar um novo imposto sobre a exportação de petróleo bruto. Embora a crítica de Pessôa, publicada no jornal Folha de S. Paulo, diga respeito ao governo atual, o artigo de Pereira, não. Publicado em 2021 na revista acadêmica The Economic History Review, o artigo argumenta que o aumento dos impostos de exportação teria contribuído significativamente para a estagnação das exportações de algodão brasileiro no século 19.

Para o historiador Rafael Marquese, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o argumento fiscalista defendido por Pereira e utilizado com fins político-ideológicos por Pessôa ignora completamente o mundo do trabalho que sustentava a economia do algodão no século 19 – uma economia que era movida pelos braços e o suor dos escravizados, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde a produção de algodão foi mais bem-sucedida.

“Não dá para estudar escravidão sem tratar o trabalho de forma central, pois a escravidão é uma relação de trabalho”, afirmou Marquese em uma sessão de apresentações durante o 32º Simpósio Nacional de História. O simpósio promovido pela Associação Nacional de História (Anpuh) aconteceu em julho, em São Luís do Maranhão.

Rafael Marquese - Foto: Currículo Lattes

No evento, Marquese coordenou um simpósio temático organizado por um grupo de historiadores que se reúne há quase dez anos para trocar impressões e experiências sobre suas pesquisas, concentradas principalmente nas relações entre o capitalismo e a escravidão no século 19. Desses encontros, já nasceram três livros publicados. Porém, essa foi a primeira vez que o grupo organizou seu próprio simpósio temático no encontro nacional da Anpuh.

Ao Jornal da USP, o professor da FFLCH explicou que levou ao evento a provocação sobre o argumento fiscalista dos economistas com o duplo objetivo de dialogar com os historiadores maranhenses, que conhecem muito bem a história da crise do algodão, e de demonstrar as limitações de uma história econômica que não olha para as relações sociais, esvaziando “o conteúdo do que é economia”.

“A história econômica tem uma cisão muito grande com outros campos da história. Tem muita coisa sendo feita sobre identidades, sobre os sujeitos subalternos na história social e na história cultural”, disse o docente à reportagem. Por outro lado, muitos processos que envolvem questões materiais, como trabalho e produção econômica, têm ficado de fora do radar dos pesquisadores dos outros campos. “A ideia é voltar a juntar essas perspectivas (que são) colocadas de forma separada”, completou Marquese.

Tropas brasileiras na repressão da Balaiada (1835), ilustrada por Johann Moritz Rugendas - Gravura: Domínio público

Das commodities às revoltas escravas

A crise do algodão no século 19 é um capítulo bastante conhecido da história do Maranhão. Ao lado de Pernambuco, foi a principal região produtora da commodity no Brasil do século 19. Os historiadores econômicos há muito discutem o que teria causado a queda na rentabilidade do algodão brasileiro em uma época em que o produto gerava grandes ganhos para os escravistas do sul dos Estados Unidos, impulsionado pela demanda da indústria têxtil britânica a partir da Revolução Industrial.

Em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP em 2017, Pereira ofereceu uma nova interpretação a esse capítulo da história econômica brasileira ao focar a contribuição da política fiscal do Brasil Império na crise do algodão. Essa interpretação rompeu com uma longa linhagem de pesquisas que viram no alto custo do transporte e na falta de mão de obra as principais causas da crise. Entre outras coisas, Pereira conseguiu demonstrar a alta densidade de trabalhadores escravizados nas regiões produtoras de algodão, derrubando a proposição da falta de mão de obra.

No artigo, o autor argumenta que, na tentativa de aumentar a arrecadação sobre o algodão de fibra longa, de maior qualidade, o governo imperial acabou derrubando a rentabilidade do algodão de fibra curta, que viria a ser aquele de maior demanda no século 19. Para Marquese, que participou da banca de doutorado de Pereira, embora o trabalho de pesquisa do economista seja muito bom, ele não consegue demonstrar esse argumento com evidências empíricas, uma vez que o principal tipo de algodão cultivado no Brasil na época continuou a ser o algodão arbóreo de fibra longa, mesmo depois que os Estados Unidos passaram a cultivar o algodão herbáceo de fibra curta.

Para além do elemento fiscal, o começo do século 19 viu nascerem muitas inovações no campo. Algumas foram máquinas para o beneficiamento do algodão, como as descaroçadoras. Outras foram inovações de “gestão”, como a criação de metas de produção para cada trabalhador. Em sua apresentação em São Luís, Marquese explicou que as descaroçadoras não funcionavam bem com a variedade de algodão arbóreo comum no Maranhão e em Pernambuco. Elas eram muito mais compatíveis com o algodão herbáceo adotado pelas fazendas norte-americanas.

A máquina acelerava o beneficiamento das fibras, mas a colheita do algodão herbáceo era ainda mais difícil e demorada que a do algodão arbóreo. A solução dos escravistas norte-americanos foi implementar o mesmo sistema de metas que foi proposto no Brasil, o que intensificou a exploração do trabalho dos escravizados, com aumento da carga horária, da vigilância e dos castigos. Na opinião do professor da FFLCH, a interpretação fiscalista dos economistas silencia justamente sobre essas dimensões do cotidiano das populações que foram submetidas à escravidão.

O debate de ideias

O economista Thales Zamberlan Pereira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), procurou a reportagem do Jornal da USP solicitando o direito de resposta às colocações do professor Rafael Marquese, proferidas em uma sessão de apresentações durante o 32º Simpósio Nacional de História. Ele lembrou que o artigo alvo de crítica foi agraciado com T. S. Ashton Prize, concedido pela Economic History Society a trabalhos de destaque. Leia a seguir a manifestação de Pereira:

Pedi direito de resposta ao texto porque minha pesquisa foi descaracterizada em uma reportagem que não me ofereceu oportunidade de defesa. A principal crítica de Marquese é que ignoro o papel da escravidão em um artigo cujo objetivo é apresentar uma nova explicação para a estagnação da economia algodoeira do Maranhão durante a primeira metade do século XIX. Ele afirma que “o argumento fiscalista defendido por Pereira […] ignora completamente o mundo do trabalho que sustentava a economia do algodão no século 19 – uma economia que era movida pelos braços e o suor dos escravizados, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos”.

O que é surpreendente nessa crítica é que Marquese sabe que considero a questão da escravidão tão importante que publiquei outro artigo, antes daquele alvo da crítica, que trata somente sobre esse tema. A ordem de publicação dos textos ocorre porque não comecei a minha pesquisa com uma resposta pronta e busquei primeiro avaliar empiricamente as hipóteses de pesquisadores que me precederam. Resumindo o debate, uma das principais hipóteses para a estagnação da economia algodoeira era a escassez de mão de obra, devido à concorrência com outras culturas como o café. Demonstro que não houve escassez de mão de obra no Maranhão quando a economia algodoeira entrou em declínio. A partir desse resultado, busquei outras explicações.

Não acho produtivo, portanto, ser taxado de “fiscalista” (com uma conotação negativa) por ter encontrado um mecanismo que pode explicar a estagnação da economia do algodão, após ter avaliado as hipóteses de outros pesquisadores. Apresento minhas hipóteses de forma clara, mas não consigo entender qual é a explicação de Marquese para a estagnação. Se o efeito da taxação das exportações é irrelevante, como se deduz do que diz, qual é a sua interpretação alternativa, suas evidências, seus mecanismos?

Eu gostaria de enfatizar que este texto não é um ataque ao historiador Rafael Marquese, é apenas uma defesa do meu trabalho, uma vez que a escravidão é central na minha pesquisa. Além disso, a própria taxação por parte do governo central sobre o algodão do Maranhão possui implicações importantes para entender a economia política da economia escravista, em especial o peso das elites do sudeste na construção do Estado brasileiro, que empurraram um peso desproporcional e desigual da carga tributária para a população das províncias da região norte (atual nordeste). Portanto, sugiro, para o bem da pesquisa histórica, reler o trabalho.

Violências contra a mulher negra

Outros pesquisadores que participaram da mesma sessão apresentaram trabalhos juntando as dimensões da economia e das relações sociais. Cristiane Pinheiro Santos Jacinto, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do MA (IFMA), apresentou resultados de sua pesquisa sobre violências contra mulheres negras no contexto da economia de plantation do Maranhão. Estudando registros policiais da primeira metade do século 19, ela encontrou muitas ocorrências de espancamentos, estupros e tentativas de assassinato contra mulheres negras cometidas por homens negros, escravizados ou libertos. Havia, inclusive, casos de mulheres que eram espancadas por seus próprios companheiros, reproduzindo uma violência que fazia parte do modus operandi da escravidão.

“Essas mulheres estavam trabalhando intensivamente no campo e os registros mostram que elas estavam ainda mais expostas à violência [do que os homens]”, disse a pesquisadora, explicando que essas violências interpessoais se somavam às jornadas de trabalho extenuantes nas fazendas de arroz e algodão, à exposição às punições e violências sexuais cometidas pelos senhores e à crueldade de senhoras enciumadas. Diferentemente da violência sofrida pelas mulheres brancas, as ocorrências contra mulheres negras citadas por Cristiane se tornaram públicas. Isso ocorreu também porque os escravistas exigiam reparações financeiras pelos danos a seus “investimentos”. Para Cristiane, a assimilação dessa lógica da violência persiste até hoje, vitimando principalmente mulheres negras.

Marcelo Ferraro, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), apresentou um projeto de pesquisa sobre os movimentos de resistência de escravizados, libertos e quilombolas no Maranhão no período de 1861 e 1871. Esse período abarca dois importantes episódios de resistência: a revolta de Anajatuba, iniciada com um incidente diplomático entre Brasil e Estados Unidos e inspirada pela guerra civil americana; e a insurreição do Quilombo de Viana, durante a qual circulou um manifesto em defesa da liberdade. A ideia de Ferraro é propor uma espécie de “economia política da resistência”, partindo da hipótese de que a intensificação do trabalho escravo no século 19 também aumentou as revoltas.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

 
** Este conteúdo foi modificado em 22/08/2023, às 16h16, para incluir a manifestação de Thales Zamberlan Pereira.
 
** Este conteúdo foi alterado em 08/01/2024, às 11h16, para corrigir informação sobre o trabalho de Cristiane Pinheiro Santos Jacinto.

Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.