“A construção de inteligências artificiais sempre esteve cercada de controvérsias, não apenas sobre seus limites, mas também sobre quais os objetivos a perseguir. Parece haver dois estilos fundamentalmente diferentes de abordagem em Inteligência Artificial (IA): de um lado, um estilo empírico, fortemente respaldado por observações sobre a biologia e a psicologia de seres vivos, e pronto para abraçar arquiteturas complicadas que emergem da interação de muitos módulos díspares; de outro lado, um estilo analítico e sustentado por princípios gerais e organizadores, interessado em concepções abstratas da inteligência e apoiado em argumentos matemáticos e lógicos.” Esse é um trecho do artigo No Canal da Inteligência Artificial – Nova Temporada de Desgrenhados e Empertigados, do professor Fabio Gagliardi Cozman, da Escola Politécnica da USP, que abre o dossiê Inteligência Artificial, publicado na nova edição da revista Estudos Avançados, publicada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. A nova edição – de número 101 – já está disponível na plataforma Scielo.
Segundo o professor da USP Sérgio Adorno, editor da revista, a Inteligência Artificial vem se desenvolvendo há mais de seis décadas. “O conjunto de contribuições para esse dossiê explora diferentes facetas, relacionadas às suas origens e história recente, seus ciclos de estagnação temporária e de avanços significativos, os debates que suscita no campo da ciência e da tecnologia, suas múltiplas possibilidades de uso. Porém, ao mesmo tempo, examina seus riscos, os cuidados éticos que seu emprego massivo requer, suas implicações sociais, políticas, culturais e morais que transformam rapidamente as sociedades contemporâneas”, afirma Adorno, no editorial da nova edição de Estudos Avançados. O professor destaca artigos sobre as influências dessas tecnologias no campo do ensino e do aprendizado de máquina e de suas potencialidades para a ciência forense digital, e de um lado, não necessariamente positivo, sobre o impacto no mundo do trabalho e do emprego. Além do dossiê sobre Inteligência Artificial, Adorno informa que a publicação traz dois outros conjuntos temáticos, sobre ensino superior e agricultura urbana, além de resenhas (leia o texto abaixo).
O artigo que abre o dossiê, do professor Fabio Cozman, apresenta a Inteligência Artificial segundo dois estilos diferentes, “jocosamente referidos como scruffy (desgrenhado) e neat (empertigado)”. Como diz o autor, o texto revisa a tensão entre desgrenhados e empertigados ao longo da história da IA, analisando o impacto do atual desempenho de métodos de aprendizado profundo nesse debate, e sugerindo que o desenvolvimento de arquiteturas computacionais amplas é um caminho particularmente promissor para a IA. Segundo ele, as expectativas da sociedade sobre essa tecnologia são imensas. “Um pouco de excesso pode ser observado: em alguns casos, excesso de propaganda para produtos ditos de IA e em outros casos, excesso de preocupação com efeitos da tecnologia. A comunidade envolvida no desenvolvimento da IA, em sua grande maioria, segue procurando melhorar a produtividade e qualidade da vida humana mediante a construção de artefatos que possam nos auxiliar inteligentemente”, escreve. Mas como atingir esse objetivo é a questão, diz, sugerindo que é preciso investir em arquiteturas baseadas em princípios de racionalidade e que permitam abrigar vários módulos simultaneamente, muitos dos quais baseados em coleta maciça de dados.
Resultado da revisão sistemática da literatura e da experiência de Rosa Maria Vicari na área, o artigo Influências das Tecnologias da Inteligência Artificial no Ensino destaca que, nos seus 64 anos de existência, a IA passou por “dois invernos” (1980 e 1993), em que as aplicações eram interessantes, mas a IA não conseguiu dar respostas adequadas, na compreensão da linguagem e no diagnóstico médico; e por duas décadas de progresso (2000 e 2010), em que as aplicações se mantiveram, mas as respostas da IA apresentaram avanços na tradução automática (Google), no reconhecimento de imagens (a primeira a utilizar a tecnologia foi a Apple, no iPhone 10), diagnóstico do câncer (IBM Watson) e carros autônomos (dentre outras, a Tesla). O artigo apresenta uma visão dessas mudanças, em particular para a IA aplicada a sistemas educacionais. “Com base nos anos de trabalho em aplicações da IA em sistemas educacionais – em particular, com trabalhos em modelos simbólicos, que estão na origem da disciplina –, é necessário reconhecer que foi na Aprendizagem de Máquina (Machine Learning – ML), sendo treinada com muitos dados, com mecanismos de representação do conhecimento, e raciocínio baseados nas Redes Neurais e nos modelos estatísticos (híbridos ou não), que a IA teve seus maiores avanços atuais”, afirma a autora.
Os desafios que a área necessita enfrentar no momento, tanto de natureza técnica quanto de natureza ética e moral, estão em Inteligência Artificial e os Rumos do Processamento do Português Brasileiro, de Marcelo Finger, que traz um posicionamento sobre a área de processamento de língua natural em português, seus desenvolvimentos desde o princípio até a explosão de aplicações modernas baseadas em aprendizado de máquina. No artigo Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina: Estado Atual e Tendências, a autora Teresa Bernarda Ludermir afirma que boa parte do sucesso atual da Inteligência Artificial se deve às técnicas de aprendizado de máquina, particularmente às redes neurais artificiais, áreas abordadas no texto, que também traz os desafios e oportunidades de pesquisas, além das preocupações com impactos sociais e questões éticas.
Inteligência Artificial: Riscos, Benefícios e Uso Responsável, de André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho, aponta que a IA pode reduzir a necessidade da presença humana em muitas atividades perigosas, monótonas e cansativas, mas, ao mesmo tempo, pode aumentar riscos existentes e trazer novos riscos, concluindo que para evitar esses riscos é necessário o desenvolvimento de novos algoritmos, ou seu uso de maneiras novas e inovadoras, levando em consideração questões éticas, sociais e legais. Também sobre riscos é o artigo de Jaime Simão Sichman, Inteligência Artificial e Sociedade: Avanços e Riscos, que busca evidenciar os grandes avanços e potenciais riscos que essa tecnologia, tal como qualquer outra, pode provocar caso os atores envolvidos na sua produção, utilização e regulação não criem um espaço de discussão adequado dessas questões.
Há ainda outros três textos que abordam soluções e problemas da IA: Contribuições de Aprendizado por Reforço em Escolha de Rota e Controle Semafórico, de Ana L. C. Bazzan, mostra que técnicas de Inteligência Artificial estão sendo adicionadas a sistemas inteligentes de transporte para melhorar a utilização da infraestrutura existente; A Inteligência Artificial e os Desafios da Ciência Forense Digital no Século XXI, de Rafael Padilha, traz informações associadas à aplicação dessas técnicas, fornecendo exemplos de seu uso em situações reais; e O Fim do Trabalho – Entre a Distopia e a Emancipação, de Ricardo Abramovay, revela uma tendência incontornável: o fim dos empregos, mas, segundo o autor, não porque as formas mais avançadas da revolução digital (a Inteligência Artificial, a aprendizagem de máquinas e a internet das coisas) já estejam substituindo boa parte dos trabalhos, e sim porque elas estão fortalecendo uma polarização social do mercado de trabalho que vai na contramão do que foram as bases do próprio Estado de bem-estar social do século 20.
Os rumos do ensino superior e da agricultura urbana
“Três conjuntos temáticos compuseram esta edição: Inteligência Artificial, Ensino superior e Agricultura urbana”, escreve Sérgio Adorno no editorial da nova edição da revista Estudos Avançados. Por uma Tipologia do Ensino Superior Brasileiro: Teste de Conceito foi escrito por conceituados estudiosos, Simon Schwartzman, Roberto Lobo Silva Filho e Rooney R. A. Coelho, que discorrem nas suas 34 páginas sobre o ensino superior no Brasil. Segundo Adorno, o objetivo é propor uma tipologia de diferentes tipos de instituições, que leve em consideração as atividades de ensino da graduação e da pós-graduação, assim como da produção de investigação científica. “Para tanto, foram agrupadas instituições com perfis semelhantes, segundo seu porte, sua natureza jurídica e seu envolvimento com as atividades de ensino e pesquisa. Examinou-se, ainda, a correspondência entre as diferenças apontadas e as diferenças relativamente a corpos docente e discente e às áreas de atuação. Implicações do estudo visam a contribuir tanto para o aperfeiçoamento do sistema de avaliação quanto para a melhoria da qualidade e desempenho do ensino superior”, informa.
Já o terceiro conjunto, Agricultura Urbana, reúne resultados de investigações que tratam das modalidades e alternativas à promoção da segurança alimentar, como explica Adorno. São seis artigos: Agricultura Urbana no Município de São Paulo: Considerações sobre Produção e Comercialização discute a produção agrícola e seu escoamento; Agricultura Urbana e Agroecologia no Território do Extremo Sul do Município de São Paulo aborda o incentivo da prática agroecológica, o surgimento da única cooperativa de agricultores paulistanos, a Cooperapas, e a ampliação da produção e comercialização de alimentos agroecológicos para a cidade de São Paulo; Multifuncionalidade da Agricultura Urbana e Periurbana: Uma Revisão Sistemática reúne a literatura sobre a multifuncionalidade da agricultura urbana e periurbana realizada nas bases de dados Science Direct (Elsevier), Scientific Electronic Library (Scielo) e portal de periódicos Capes; A Vida Cotidiana das Hortas Comunitárias: Casos de Rennes (França) e São Paulo (Brasil), que expõe os discursos e práticas em cada localidade; Comidas da Horta e do Mato: Plantas Alimentícias em Quintais Urbanos no Vale do Paraíba, praticada nas cidades de Areias e São José do Barreiro, cercada de saberes sobre cultivo, coleta e consumo de diversas plantas consideradas não convencionais para o grande mercado; e, por fim, Locavorismo: Uma Análise de suas Contradições à Luz de Experiências de Agricultura Urbana em São Paulo explora o movimento de ativismo alimentar, contextualizando seu surgimento e algumas de suas manifestações.
Encerrando a publicação, a seção Resenhas traz cinco obras, com repercussão no debate acadêmico, como lembra Adorno. O Programa Científico do Antropoceno retoma o que o Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen e o limnologista Eugene Stoermer publicaram na newsletter do International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP) sobre a hipótese na qual a atual época geológica do planeta Terra, o Holoceno, havia se encerrado e em seu lugar se iniciara o que viria a ser reconhecido como o Antropoceno. Há ainda História Social e Autoritarismo no Brasil: Ligações entre Passado e Presente, acerca da nova obra de Lilia Schwarcz, Sobre o Autoritarismo Brasileiro; Um Intelectual sem Concessões, sobre Roberto Schwarz e suas mais de cinco décadas de atividade, no livro Seja Como For; Paulo Rónai, Brasilianista Húngaro, Exilado e Abrasileirado é tema do livro O Homem que Aprendeu o Brasil; e A Forma Simbólica da Modernidade, sobre O Romance de Formação, de Franco Moretti.
A revista Estudos Avançados, número 101, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, está disponível na plataforma Scielo.