Quando os modernistas tentaram demolir o teatro burguês

Livro analisa contribuições da geração de 1922 para a transformação do teatro brasileiro

 16/01/2024 - Publicado há 4 meses
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Cena de O rei da vela, de Oswald de Andrade, montada pelo Teatro Oficina em 1967, direção de José Celso Martinez Corrêa – Foto: Divulgação CosacNaify via Revista Pesquisa/Fapesp

 

Nas primeiras décadas do século 20, as contradições da sociedade burguesa e do capitalismo colocaram em crise não apenas as dimensões sociais e econômicas que constituíam a belle époque, mas exigiram também novas reflexões e atitudes no campo das artes. As vanguardas europeias e, no nosso quintal, o Modernismo da Semana de 22 foram respostas para a ruína de modelos estéticos assentados na idealização burguesa do sujeito e da sociedade. O teatro não escapou desse chamado à mudança.

Desde o final do século 19, a estrutura dramática começou a dar sinais de esgotamento e de incompatibilidade face às urgências das sociedades industriais, nas quais as massas proletárias se multiplicavam reivindicando espaço e direitos. O drama do sujeito burguês, que fazia seu próprio caminho a partir de ações sedimentadas em ideais liberais, já não dava conta das complexidades do mundo contemporâneo e da inutilidade da vontade individual como instrumento da mudança. A estrutura em atos, metodicamente organizados em apresentação da trama, aprofundamento do conflito e resolução, havia se tornado insuficiente para representar a dinâmica social, muito mais contraditória e fragmentada do que o palco italiano pretendia fazê-la. Em resumo, o drama havia se tornado impossível.

É nesse cenário que dramaturgos, diretores, atores, cenógrafos e encenadores vão propor mudanças sutis, radicais, reformistas ou revolucionárias para o teatro. Ibsen, Pirandello, Meyerhold, Craig, Copeau e Brecht, entre outros, pensaram o teatro para além ou apesar do drama, deixando legados mais ou menos duradouros para as artes da cena do século 20. Mas enquanto estes artistas europeus incendiavam o Velho Mundo, aqui no Brasil também havia quem estivesse debruçado em catapultar o teatro nacional para a modernidade. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado foram alguns deles.

A contribuição desses três modernistas para o pensamento e a prática teatral brasileira é justamente o tema de O drama impossível, livro recém-lançado por Sérgio de Carvalho, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, dramaturgo, encenador e fundador da Companhia do Latão. A obra é fruto da tese de doutorado de Carvalho, defendida em 2002 no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Vindo a público na esteira das ações que celebraram os cem anos da Semana de 22, o volume reafirma a vitalidade e a originalidade das ideias de seus principais personagens, mesmo em áreas nas quais suas investidas não ultrapassaram a condição de projeto.

Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade – Fotos: Villa Rica Ed. Reunidas, Arquivo Nacional e Michelle Rizzo/Wikipedia

 

A matéria de trabalho do autor são os textos cênicos de Oswald (O rei da vela, O homem e o cavalo, A morta) e Mário (o poema-libreto para a ópera Café) e a produção jornalística de Alcântara Machado como crítico teatral, polemista e ensaísta. Para Carvalho, os escritos dos modernistas buscaram uma poética antiburguesa brasileira, que atestava a impossibilidade dramática do teatro nacional. Inspirados pela postura antiliberal verificada nas vanguardas estrangeiras, com sua desconstrução crítica do sujeito humanista burguês, os modernistas paulistas tentaram atitudes semelhantes em suas pesquisas.

Tiveram, contudo, que se debater no caminho com suas aspirações por uma arte teatral enraizada no próprio Brasil. Instalava-se aí uma contradição, pois o teatro brasileiro deveria superar o drama sem mesmo tê-lo constituído em território nacional. Para Mário, Oswald e Machado, afirmar uma teatralidade nacional integradora e, ao mesmo tempo, sublinhar a impossibilidade do drama brasileiro eram as faces de uma moeda tanto antiburguesa quanto imersa na própria elite cafeicultora por onde circulavam.

Em outras palavras, enquanto as influências externas inspiravam a superação do drama burguês, os modernistas também estavam em busca daqueles aspectos culturais que seriam tipicamente brasileiros. E encontravam uma sociedade que, em suas relações econômicas e sociais, ainda não havia efetivamente se aburguesado. No campo artístico, essa indefinição criava problemas, pois gêneros como o romance e o próprio drama, pautados na afirmação humanista dos sujeitos livres e autônomos, não encontravam ecos na sociedade. Como escrever sobre heróis abrindo seu lugar no mundo a partir de suas próprias ações em um contexto ainda carregado das estruturas coloniais, patriarcais e escravagistas?

Sérgio de Carvalho – Foto: Arquivo pessoal

“Diante de uma sociedade sem campos de diferença para o reconhecimento do outro, a forma do drama”, escreve Carvalho, “será sempre de difícil transposição. Talvez por isso, até a pesquisa antiburguesa dos modernistas nunca se livrou por completo do certas expectativas dramatizantes. Desde a Independência, o ideal dramático é uma espécie de maldição para o escritor brasileiro: apresentado como necessário para a efetivação de uma dramaturgia nacional elevada, continuava suspeito como realização material.”

Obviamente, política e arte aqui se misturam (como em qualquer lugar). E com a crise de 1929 e a depressão econômica que a acompanhou, as proposições teatrais de Mário, Oswald e Alcântara Machado passaram a sinalizar, de maneira cada vez mais urgente, o entendimento da “função essencialmente socializante do teatro”. As pesquisas de Mário e Oswald por formas não dramáticas encontram motivação na vontade de ampliar sua ação social, reafirmando questões já formuladas na década de 1920. Apartados dos ambientes aristocráticos dos anos anteriores, buscam distância dos ideais vinculados às elites cafeeiras e tentam em seu teatro materializar o anseio de coletivização politizada, sem deixar, contudo, de carregar os fantasmas da busca pelo drama nacional.

Alcântara Machado, por sua vez, pertencente a uma influente família paulistana, teve de esperar até o conflito armado da Revolução Constitucionalista de 1932 para conseguir identificar mais seriamente suas proposições antiburguesas para o teatro com a realidade socioeconômica nacional. Ele conseguiria formular princípios antidramáticos para a cena brasileira inspirado por formas populares locais, em diálogo com as experiências europeias da crise do sujeito. Não foi mais longe em virtude de seu falecimento precoce, aos 33 anos, em 1935.

Para Carvalho, revisitar as contribuições destes três modernistas significa apontar para uma hipótese dentro do trajeto convencional da historiografia teatral brasileira. Se a modernização do nosso teatro é situada nas décadas de 1940 e 1950, tendo o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) como seu expoente, de acordo com o autor esta modernização correspondeu exatamente ao seu processo de aburguesamento. O que se entendeu por um teatro moderno no Brasil trata-se do momento no qual sua dramaturgia chegou aos padrões formais do drama psicológico realista oitocentista. E também quando foi alcançado um equilíbrio empresarial entre expectativa das plateias de classe média e as ofertas cênicas, aliado a um maior cuidado técnico com o espetáculo e com o trabalho dos atores.

O drama impossível: o teatro modernista de Antônio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, de Sérgio de Carvalho, Edições Sesc, 284 páginas, R$ 57,00

Tudo isso, aponta Carvalho, teria criado a falsa impressão de que estávamos finalmente na era da encenação crítica. Mas essa modernização estava muito longe do processo que levou à encenação moderna na Europa, com sua crítica à ordem burguesa. “O que houve, no caso do teatro brasileiro, pelo menos até o final da década de 1950, foi uma modernização sem modernismo, mais efetiva e conservadora do que a tentada pela geração anterior, aquela que imaginou um modernismo teatral sem modernização burguesa.”

A geração de Mário, Oswald e Alcântara Machado. Em seus escritos, vemos não o anúncio do que aconteceria nas décadas de 1940 e 1950, mas algo além. Experimentos que não passaram de esboços, repletos de contradições, mas comprometidos com a transformação dos padrões do teatro brasileiro, projetos de “inventividade aberta pela condição de sonho”, conforme escreve Carvalho. São testemunhos dos limites de um aburguesamento contraditório em curso, no qual dançam entre o apego e o desapego ao ideal dramático e lutam para reconhecer as novas forças sociais criadas pela industrialização. Projetos que inspiraram gente como o próprio Carvalho no sonho de que o teatro possa dialogar efetivamente com o conjunto da sociedade. Sua força reside exatamente na fricção, e o inacabamento de suas propostas é um convite para que a construção siga coletivamente.


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