João Victor Kosicki*
Escrito entre 1762 e 1764 por Basílio da Gama, esta primeira edição do manuscrito Brasilienses Aurifodinae, As Minas de Ouro do Brasil – publicada pela Editora da USP (Edusp) –, apresenta um retrato instigante da sociedade formada em volta da economia do ouro nas Minas Gerais do período dos setecentos. Esse poema didático revela-se um testemunho raro de alguém que presenciou as atividades mineradoras de perto. Escrito em latim, o poema mistura história, ciência e as técnicas da época, valendo-se de palavras em tupi, a “língua geral do Brasil”, e português para reproduzir com maior precisão os processos técnicos de lavra, os grupos sociais e as formas de fiscalização e taxação, fazendo entrever os jogos políticos e econômicos do período.
Anterior à publicação de O Uraguai, marco decisivo do Arcadismo e um dos poemas mais importantes para a formação da literatura brasileira, esse manuscrito provavelmente foi responsável pelo ingresso do poeta na Arcádia Romana, para a qual foi aceito em 1762, onde circulou entre os cultos e literatos da cidade de Roma. Seguindo as convenções da epopeia latina, o poema canta as diferentes opiniões relativas à origem do ouro: a mitológica, a dos antigos naturalistas e a dos físicos modernos. Também descreve, com grande tecnicismo, os processos de prospecção, os sinais indicativos da presença do mineral e os instrumentos e técnicas requeridas na mineração aurífera. Deixa entrever os grupos sociais envolvidos, mencionando as principais zonas produtoras – Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e São Paulo –, as vestimentas e costumes, bem como a hierarquização que organiza o mundo aurífero.
O elemento humano, apresentado como o motor do ciclo do ouro, aparece impregnado pela cosmologia setecentista, em especial os escravizados, a força de trabalho principal. As descrições expressam, com o pudor do anacronismo, uma ideologia racial que agride nossa sensibilidade contemporânea, embora retrato importante das ideias e convicções que permeavam o período. São expostos os processos de compra, de vida conjugal, de religião, de alimentação, de vestuário, de habitação, de punições e bonificações, de tipos de contrato a que estavam sujeitos, as doenças que contraíam – fornecendo um amplo e detalhado panorama da configuração social e da aspereza das condições de trabalho.
Esse talvez seja o primeiro poema que expõe a mineração aurífera no Brasil de forma pormenorizada, propondo-se a responder questões prementes na época acerca do ouro americano e retificar imprecisões sobre o tema popularizadas pelo jesuíta francês François Antoine le Febvre no poema Aurum, de 1703. Para tal, o poeta não só se vale dos modelos da poesia didática como Ovídio, Horário e Virgílio, mas também remete a livros como De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico, Opticks, de Newton, e outras obras contemporâneas que comprovam uma formação intelectual com o que havia de mais moderno em termos científicos no período, como a apreciação do modelo copernicano e cartesiano.
O poema traduzido do latim por Alexandra de Brito Mariano toma como base os belos manuscritos disponíveis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo. A obra conta com um estudo amplo realizado pela tradutora, além de uma introdução de Vania Pinheiro Chaves, maior especialista viva em Basílio da Gama e professora da Universidade de Lisboa, e um posfácio da historiadora Junia Ferreira Furtado, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Essa edição primorosa da Editora da USP, com reprodução parcial dos manuscritos e a inclusão de diversas figuras – entre elas, aliás, uma representação da disposição espacial da mineração, que serve de base para a bela capa feita por Gustavo Piqueira – mobiliza um esforço ultramarino para apresentar um dos grandes nomes da formação da nossa literatura, testemunha ocular da sociedade brasileira dos setecentos.
Ao leitor contemporâneo, esse poema de linguagem clara, direta e legível revela sua atualidade ao colocar em seu centro o garimpo e a escravidão como elementos importantes para a compreensão do Brasil e de sua organização social. O processo de interiorização do Brasil, motivado pela busca de minerais raros, e os horrores da escravidão ressoam contemporâneos de muitos dilemas de nosso tempo. Por essa razão, este livro tem sua importância para além da história literária ou de especialistas em literatura, constituindo fonte interessante para historiadores, antropólogos, economistas, sociólogos e demais interessados na história e nos impasses do Brasil.
As Minas de Ouro do Brasil, de Basílio da Gama, tradução de Alexandra de Brito Mariano, Editora da USP (Edusp), 392 páginas, R$ 190,00
*João Victor Kosicki é doutorando em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.