Uma faixa incandescente sai da janela da Chácara Lane. Atravessa a Rua da Consolação na altura do número 1.000. E interfere na paisagem, especialmente à noite. Essa luz, que os pedestres e motoristas veem de longe, é provocada por 400 lâmpadas tubulares. Estão presas a uma estrutura metálica de 20 metros de comprimento que transpassa o espaço interno da casa amarela construída no final do século 19.
Com essa instalação, a paulistana Carmela Gross – professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – dialoga com a cidade. E convida para a mostra Arte à Mão Armada. Ou seja, uma mostra que assalta o cotidiano com obras que, há 50 anos, vêm contando e se integrando na história da cidade.
Vale entrar e observar tanto a história dessa chácara tombada pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) como a história de uma arte que atravessou as rebeliões e pressões da década de 1960. A obra que abre a exposição chama-se Escada, feita em 1968. Em plena arbitrariedade e pressões do AI-5, uma jovem estudante de Artes Plásticas da Faap faz sua primeira interferência na paisagem. Pinta com tinta preta sobre as valas da rua de barro que estava sendo aberta por um trator. A obra foi registrada na fotografia do também artista Marcelo Nitsche. “Gosto de pensar este trabalho como um desenho. Talvez um grafismo paleolítico, pois ele evoca a maneira mais primitiva de desenhar”, conta Carmela. Lembra que, durante um período de greve, saiu para pintar e fotografar com os amigos da faculdade. “Decidimos parar numa zona quase deserta, lá pelos lados de Santo Amaro, onde uma avenida recém-aberta cortava uma área acidentada entre curvas, buracos e grandes barrancos. Eu me aproveitei para desenhar linhas em zigue-zague como os degraus de uma escada.”
Essa escada de 1968, com a foto da estudante de vestido de tons amarelo e verde, leva a uma outra escada que é a obra inédita da exposição. A artista interferiu na paisagem criando um par de escadas pintadas de vermelho para conectar os jardins da Chácara Lane com o pátio da vizinha Escola Municipal de Educação Infantil Gabriel Prestes. “Quando vi esse pátio com as crianças, a minha primeira proposta para o projeto da exposição foi construir essa escada que transpõe o muro e possibilita a passagem das crianças”, explica Carmela. “A escada apaga os limites físicos entre os dois espaços, recompondo a atividade artística como ação lúcida e lúdica e pensando a educação como atividade livre e criadora.”
Muitos caminhos
Com a obra Escada-Escola, a artista incentiva a arte na educação das crianças. E elas fazem questão de transpor o muro e ir até a varanda onde outra obra, Hino à Bandeira, convida à atividade lúdica. Lençóis de várias tonalidades de rosa estão estendidos no chão para lembrar os antigos quaradouros. E as crianças têm os regadores à disposição e se divertem jogando água sobre eles.
A exposição, no entanto, traça muitos caminhos. O curador Douglas de Freitas consegue pontuar os cinquenta anos da trajetória de Carmela Gross em 50 obras de 15 séries diferentes, além de uma documentação nunca exposta sobre seus trabalhos e processo criativo. “Exibimos, pela primeira vez, os fac-símiles de todas as pastas de projetos da artista, onde todo o processo de construção da obra está registrado. São cerca de 100 pastas, algumas com 300 documentos dentro, incluindo os trabalhos A Negra, de 1997, e os Carimbos e Carimbadas, de 1977, com desenhos e estudos de execução.”
Na obra A Negra de Carmela Gross é possível observar a forma como a artista vai buscando referências e compondo a sua própria arte. “Existe uma relação deste trabalho com A Negra de Tarsila do Amaral, mas esta relação não foi armada antecipadamente”, explica. “Elas não se aproximam pelos aspectos formais, nem andam juntas no mesmo espaço. Apropriei-me do nome para pensar meu trabalho em chave histórica. Um ready-made para o título, uma espécie de duto temporal para o nosso modernismo.”
No andar térreo estão as obras Feche a Porta, de 1997, que apresenta tubos de ferro presos por dobradiças à parede e a série de 20 monotipias Pensas, Achas, Pode, Gosto, de 1996. Uma surpresa para o visitante é a instalação Comedor de Luz, de 1999 a 2000. São lâmpadas fluorescentes e ferro dispostos no chão de cerâmica de uma sala que fica no fundo da casa. O efeito surpreende pela luz amarela que se espalha no espaço. A impressão é de que a obra foi feita exatamente para habitar aquela sala. “Essa instalação já foi montada em vários lugares, mas o impacto nesse espaço foi inesperado”, observa Carmela.
A presença, o funcionamento e a construção da cidade também estão presentes na mostra. “O visitante pode observar a radicalidade com que a arte pode desafiar e questionar a normalidade das coisas, a lógica da cidade e sua própria lógica”, orienta Douglas. A sala com a instalação Us cara fugiu correndo registra a atuação dos pichadores em luzes vermelhas de neon. São garranchos pontiagudos, com uma frase escrita na linguagem das tribos, em um protesto anônimo como os inúmeros que estão nos muros das metrópoles.
Também em protesto à mitificação do artista e aos falsos personagens de si próprios, Carmela Gross apresenta o seu ateliê sem as evidências de tintas ou pincéis. Recriou no segundo andar uma instalação onde tudo fica coberto por papel craft. O visitante vê apenas um ambiente desértico. O artista fica evidente apenas pela luz filtrada pelas janelas, esmaecida pelas claraboias empapeladas.
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Arte à Mão Armada reúne 50 obras da artista Carmela Gross, com a curadoria de Douglas de Freitas. Mostra promovida pela Secretaria de Cultura do Município de São Paulo e Museu da Cidade. Local: Chácara Lane, Rua da Consolação 1.024, de terça a domingo, das 9 às 17 horas. Até 8 de janeiro de 2017. Entrada gratuita.