Contraste entre a carência populacional por habitação na cidade e a grande quantidade de imóveis ociosos instigou pesquisadora a estudar a questão de moradia em São Paulo - Fotomontagem: Wikimedia Commons e Marcos Santos/USP Imagens - Fotomontagem: Wikimedia Commons e Marcos Santos/USP Imagens

Perfil de imóveis ociosos no centro de São Paulo revela manutenção da herança mercantil brasileira

Estudo mostra que muitas das construções abandonadas estão em posse de gerações de herdeiros, que veem o imóvel como problema ou têm expectativas irreais sobre o mercado; do outro lado estão numerosas famílias vivendo em habitações precárias na periferia

 06/03/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 07/03/2023 as 18:09

Texto: Camilla Almeida
Arte: Carolina Borin Garcia

Uma construção ociosa é aquela que está desocupada, inativa ou subutilizada, sem cumprir sua função social. A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (Smule) de São Paulo estima que 881 imóveis estejam nesta condição apenas no distrito da Sé. Ana Gabriela Akaishi, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, analisou os perfis dos donos de imóveis ociosos e explicou os entraves colocados por esses proprietários para a comercialização, com destaque para herdeiros e instituições religiosas.

O estudo revelou que 74% dos analisados são herdeiros rentistas e instituições religiosas, denominados pela urbanista como “o arcaico setor proprietário rentista imobiliário”. “Esses proprietários carregam raízes históricas e geracionais vinculadas a capitais familiares antigos de caráter mercantil, que aplicavam inicialmente em prédios de aluguel no momento em que o centro de São Paulo estava em um boom no processo de verticalização”, explica a pesquisadora.

Para chegar a estes dados, a pesquisadora verificou os perfis dos 50 donos dos imóveis de maior valor venal da área – número que estima o preço do bem, obtido por meio de uma avaliação pela prefeitura. Por meio de entrevistas com agentes imobiliários, associações beneficentes religiosas e com integrantes do mercado imobiliário em geral, Ana Gabriela Akaishi conseguiu traçar a genealogia econômica, política e social desses proprietários. Ela também realizou um levantamento em bases de dados e acervos históricos da Prefeitura de São Paulo por meio da plataforma GeoSampa. 

Ana Gabriela Akaishi - Foto: Arquivo Pessoal

Contraste

Foi o contraste entre a carência populacional por habitação na cidade e a grande quantidade de imóveis ociosos que a instigou a pesquisar o tema; São Paulo conta com um enorme déficit habitacional, que pode chegar a 450 mil famílias a serem realocadas. “Temos quase 3 milhões de pessoas vivendo em aglomerados como favelas, loteamentos precários e moradias irregulares, principalmente nas periferias. E essas pessoas têm que se deslocar diariamente por horas até o seu local de trabalho, que geralmente é nas áreas centrais.” 

Enquanto isso, no centro, estão prédios fechados e em ruínas, terrenos baldios e construções abandonadas sendo usados como estacionamentos rotativos. “Em todos esses casos temos a subutilização da terra urbana num dos lugares com a melhor estrutura na cidade”, pontua a pesquisadora ao Jornal da USP.

Historicamente, a área central de São Paulo era considerada um centro comercial e cultural desde a fundação da cidade, sendo predominantemente ocupada pela classe dominante. Grandes empresas e corporações mantinham suas sedes na região, com grandes arranha-céus e prédios que chamavam atenção de quem passava por lá. Lojas e casarões de barões do café também se destacavam junto a obras arquitetônicas grandiosas, como o Teatro Municipal. Contudo, com a mudança do centro comercial para outros bairros da cidade na década de 1960, a área passou por um grave e acelerado processo de decadência e deterioração, com aumento da especulação imobiliária.  

Imóvel “problema” e altas expectativas

Atualmente, por trás das construções em ruínas e abandonadas estão donos de gerações herdeiras mercantis, que não realizam a manutenção dos imóveis e estabelecem entraves para sua comercialização.

Os herdeiros que receberam esses imóveis estão seguindo um caminho profissional muito diferente do patriarca da família, que foi quem construiu e se rentabilizava com o aluguel de prédios. Os herdeiros então muitas vezes entendem esse imóvel como um problema”

Além disso, disputas judiciais, turbulências entre os herdeiros, junto com altas expectativas com relação ao preço da venda/aluguel são outros aspectos a se levar em consideração para entender a ociosidade no centro de São Paulo. De acordo com a pesquisadora, essas dinâmicas escancaram as marcas da construção social paulista, fundamentada no colonialismo e patrimonialismo.

As instituições católicas, presentes no centro de São Paulo desde sua fundação, também detêm muitos prédios ociosos. Agraciada por múltiplas doações e concessões feitas tanto pelo Estado quanto por empresários, a Igreja colecionou imóveis na área, mas sem conhecimento do mercado imobiliário. “São os padres das igrejas que administram essas propriedades e eles não têm experiência em compra, venda e locação de imóveis. Também não têm o conhecimento da dimensão da propriedade da Igreja na cidade: esse levantamento ainda é muito incipiente”, explica a pesquisadora.

Luta por moradia. Faixa por moradia digna na fachada de prédio ocupado no centro de São Paulo - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Na visão da autora, a não comercialização desses imóveis é um empecilho para resolver o problema habitacional no centro de São Paulo. “No centro, a demanda por moradia vem de pessoas que vivem em ocupações de movimentos sociais, da população em situação de rua e de pessoas que foram desabrigadas, principalmente depois da pandemia”, diz ela, enquanto aponta o grande déficit de políticas públicas para atender esta população.

Mais informações em: e-mail ana.akaishi@gmail.com, com Ana Gabriela Akaishi


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