É possível que a sociedade consiga dar um salto de qualidade com o aprendizado obtido pelas mudanças impostas pela pandemia, que evidencia o medo e a intolerância? A resposta é sim. Para isso, são necessárias ferramentas que ajudem a enfrentar esses desafios. Uma dessas ferramentas é a comunicação construtiva, que nada mais é do que uma proposta que se preocupa com a qualidade e a harmonia das relações interpessoais.
Nesse período, a informação e a transparência são fundamentais não apenas para conhecer o que acontece no mundo, mas para aprender a olhar para si e para o outro. A comunicação construtiva estimula, por exemplo, escutar o outro com empatia. É preciso também entender que toda mensagem que se cria tem potencial para afetar positiva ou negativamente o outro.
É o que defende o professor aposentado Edvaldo Pereira Lima, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Ele explica que os conceitos e as práticas que alicerçam a visão de mundo remontam aos anos de 1980 e 1990. Segundo o professor, hoje, a humanidade está diante de uma oportunidade única: dar um salto qualitativo de consciência.
O professor discute todas essas questões no webinar Comunicação Construtiva para uma Sociedade Consciente, que será realizado nesta terça-feira, dia 23 de junho, e na quinta-feira, 25. O professor está realizando uma série de eventos on-line para explicar como os conceitos e práticas da comunicação construtiva podem levar a uma nova compreensão sobre as tormentas da atualidade. Detalhes desse evento bem como de outras iniciativas sobre o tema podem ser obtidos no site www.edvaldopereiralima.com.br.
Ouça no player acima a íntegra da entrevista de Edvaldo Pereira Lima ao Jornal da USP no Ar – Edição Regional e para saber mais sobre a proposta, leia abaixo a entrevista da jornalista Denise Casatti com o pesquisador.
A pandemia, o medo e a intolerância analisados pelo viés da comunicação
Trazer à luz da consciência uma nova compreensão a respeito das tormentas da atualidade como a pandemia, o medo e a intolerância. Esse é o objetivo do professor aposentado Edvaldo Pereira Lima, da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Na entrevista a seguir, o professor chama a atenção sobre a responsabilidade de cada um diante dos fenômenos que assolam o mundo e aborda o papel fundamental dos comunicadores – e dos jornalistas em especial – na escrita da história da humanidade, a qual pode ser reelaborada por infinitos pontos de vista.
Denise Casatti (DC) – Como nasce a proposta da comunicação construtiva?
Edvaldo Pereira Lima (EDPL) – A comunicação construtiva é um conceito e uma prática de comunicação que venho elaborando nos últimos tempos como resultado de um movimento que começou quando eu estava ativo na USP, nos anos de 1980 e 1990. Inicialmente, foi um estudo focado em meu primeiro campo de pesquisa, o jornalismo literário. Mas, agora, com a pandemia assolando o mundo, houve um recrudescimento de várias linhas de reestudo do jornalismo e a busca pela prática de um jornalismo diferenciado em relação ao que está estabelecido na sociedade. Isso me fez retomar os estudos em que fui um dos pioneiros aqui no Brasil e abrir um leque para abrangermos, não só o jornalismo, mas a comunicação como um todo.
DC – Essa nova proposta de comunicação está, então, profundamente relacionada ao contexto da pandemia?
EDPL – A pandemia é o ingrediente adicional de um processo que acompanho desde o início da minha carreira na USP. É daí que vem o entendimento de que estamos vivendo na contemporaneidade, há mais de 20 anos, uma fase muito intensa de necessidade de transformação e mudança dos valores que alicerçam nossa civilização. Porque a sociedade de hoje, incluindo a maneira como percebe a si mesma e desenvolve as atividades, procede de modelos mentais que, lá atrás, trouxeram os alicerces desse mundo que está estabelecido neste momento. Acontece que há um processo universal e mais profundo relacionado ao dinamismo necessário de transformação das civilizações. Há momentos em que essa necessidade se torna mais intensa porque aqueles modelos que nos direcionaram até determinado ponto passam a ter uma polaridade negativa. É natural que, com o tempo, exista uma evolução e que os modelos de percepção da realidade envelheçam. Quando esses modelos envelhecem, passam a ser nocivos e a sociedade precisa de renovação.
DC – Qual é a transformação urgente que precisamos realizar nesse momento?
EDPL – A pandemia trouxe um desafio extremo para a humanidade: ou mudamos o modo de conduzirmos nossa vida e nossa sociedade ou esse modelo civilizatório que está imperando vai nos levar a uma situação tremendamente crítica, uma espécie de suicídio coletivo inconsciente da humanidade. Todos nós, cidadãos do mundo nesse planeta, de todas as áreas profissionais, estamos sendo desafiados a enfrentar esse desafio. Esse processo caminha para a necessária expansão de consciência dos indivíduos e da humanidade, em que não há uma separação entre a função profissional e pessoal, porque essas duas esferas estão integradas.
No meu caso, eu percebi que, desse momento em diante, nos anos de vida que ainda tenho, quero trazer uma contribuição de sensibilização e transformação da comunicação para absorção daquilo que eu já vinha trabalhando há muito tempo: a adoção de novos modelos, de novos paradigmas. Porque esses instrumentos podem nos ajudar a receber um impulso de expansão de consciência. E essa expansão de consciência, tanto para os indivíduos quanto para a coletividade humana, é o tema mais significativo nesse desafio de transformação que a pandemia nos traz.
DC – Essa expansão da consciência pode contribuir, de alguma forma, para reduzir as diversas manifestações de intolerância que temos visto ultimamente?
EDPL – A pandemia traz essa chance de ampliar a nossa consciência. Mas o que significa consciência nesse contexto? Essa palavra tem mil conotações, simplificando: consciência é a capacidade de autopercepção do indivíduo, de reconhecer a própria identidade, de perceber a si mesmo, o que está em volta, a sociedade, a vida e tudo o que existe. A maioria dos seres humanos tem um grau muito pequeno de consciência e não tem a noção de que, na verdade, somos agentes causadores de várias ações que acontecem no mundo.
No nível mais básico de consciência, as pessoas geralmente se sentem vítimas da existência. Então, tudo o que acontecer de ruim, ela não entende que, de certa forma, existiu uma raiz dentro dela que conduziu àquela possibilidade. Por isso, passa a culpar o outro, a culpar o que está fora dela e isso gera um sentimento, uma emoção e um pensamento de que há uma diferença entre eu e o outro que está lá fora, naquele que é estranho.
Quando ampliamos a nossa consciência, somos capazes de enxergar que estamos todos interconectados e que o diferente é, em essência, igual a mim. Ele enfrenta os mesmos problemas que eu enfrento porque todos nós somos seres humanos. Então, veja só: se eu não cuido de usar a máscara do modo adequado quando saio à rua, porque pouco me importo com os outros ou para aquilo que a ciência está me dizendo ou porque acho que o noticiário é manipulado, o que estou fazendo? Estou deixando de ser responsável por zelar das pessoas que mais amo, porque posso me tornar transportador desse vírus para contaminá-las.
DC – Então, é como se a intolerância surgisse a partir dessa falta de consciência?
EDPL – Quando você tem medo de olhar para dentro e de encarar as sombras que existem em você, acaba arrumando uma desculpa externa e projeta o medo e o ódio no outro. É o fenômeno que estamos vivendo agora no Brasil e no mundo inteiro em alta escala com a eclosão da pandemia, que traz à tona esses comportamentos. Mas também traz uma oportunidade extraordinária: talvez, pela primeira vez na vida, o indivíduo pode olhar para dentro e perceber como esse grau de inconsciência o torna vulnerável para os manipuladores da consciência, que têm uma visão de mundo negativista e destrutiva.
DC – Como os comunicadores podem atuar em prol da ampliação da consciência humana?
EDPL – O processo de ampliação de consciência de alguém que pratica a comunicação, por necessidade profissional ou não, é a seguinte: a pessoa precisa entender que toda mensagem que cria, todo ato de comunicação que realiza, tem potencial de afetar positiva ou negativamente o receptor da mensagem. Esse afetar positiva ou negativamente resulta da visão de mundo que está embutida na mensagem que você cria. Então, por exemplo, se nós ficarmos absorvidos pela carga negativa do excesso de comunicação que tem na mídia, referente a aspectos negativos e destrutivos da sociedade, isso pode gerar uma carga emocional excessiva e influenciar nosso estado psicológico até chegar ao ponto em que afetará a qualidade de defesa do nosso sistema imunológico, algo que a ciência de ponta já conseguiu testar.
Há inúmeros estudos científicos recentes, especialmente na área de psicologia, constatando a relação entre a exposição excessiva a notícias ruins e estados emocionais fragilizados nos indivíduos. Pesquisadores perguntam se as notícias estão nos fazendo infelizes, avaliam se induzem à ansiedade e o quanto afetam o sistema imunológico. O site do National Center for Biotechnology Information, nos Estados Unidos, publica muitas dessas pesquisas. Aqui no Brasil talvez eu tenha sido um dos pioneiros em fazer uma aproximação a esse tema, pelo lado do jornalismo, na década de 1990, adaptando, para o caso do jornalismo literário, um estudo realizado pelo professor Dante Moreira Leite – que foi diretor do Instituto de Psicologia da USP. O estudo abordava o efeito da literatura no estado psicológico do leitor, apontando que o texto literário poderia produzir um pensamento destrutivo ou construtivo, impactando a psique do leitor. Hoje em dia, alguns grandes meios de comunicação, como a CNN, nos Estados Unidos, e o The Guardian, na Inglaterra, estão assumindo essa autocrítica. Como diz um texto desse tradicional jornal britânico: “notícias ruins são ruins para você”.
DC – De qualquer forma, a solução não é o comunicador esconder esses aspectos negativos, não é mesmo?
EDPL – Claro que não. A comunicação de qualidade e a comunicação centrada nos acontecimentos ruins, nas situações negativas da sociedade, são uma necessidade vital para a saúde da democracia, para a saúde da sociedade e para a saúde dos indivíduos. É o contrário do que uns e outros, que estão no poder neste momento no Brasil, querem fazer: manipular e esconder a verdade. A informação baseada na transparência é uma missão nobre e uma função significativa, que traz de volta à sociedade o reconhecimento da importância e do valor do jornalismo praticado com seriedade. Porque a informação, no caso da pandemia, é vital. É um instrumento de defesa para a sua própria vida você saber que, no seu bairro, tem uma determinada quantidade de gente com o coronavírus e como essas pessoas foram infectadas, muitas vezes de uma maneira que não se esperava.
DC – Como os comunicadores podem agir diante da disseminação inevitável de informações negativas?
EDPL – Evitar o efeito exagerado vale tanto para os meios de comunicação tradicionais quanto para as mídias sociais. Muitas vezes, quem atua nas redes sociais são pessoas que não têm essa cultura de compressão sobre a responsabilidade ao praticar a comunicação pública. Então, o desafio é um só para todos: mostrar o lado negativo quando é necessário, quando é fundamental, mas não exagerar na dose.
Por exemplo, se você atua em um meio de comunicação jornalístico, tente balancear o conteúdo do material que publica. Em vez de inserir nove notícias centradas em aspectos completamente ruins e só uma centrada em algo mais positivo ou mais transformador, pensar em equilibrar mais. Outra alternativa é parar de solicitar informação só das fontes clássicas e tradicionais, que têm uma visão de mundo incapaz de compreender a atual situação de uma maneira nova. Há muitos especialistas que podem levar o receptor a pensar “fora da caixa” e de forma construtiva.
É fundamental também mudar a cultura de compreensão do real e entender que, até mesmo por trás de um acontecimento mais trágico, é possível existir um ângulo mais positivo, significativo e transformador. E como encontrar esse ângulo? Por exemplo, quando um repórter começa a pesquisar um assunto que é negativo à primeira vista, pode optar por não organizar a pauta e as perguntas apenas no que está estabelecido como ruim. É possível criar a cultura de fazer perguntas que levem os entrevistados a trazerem informações sobre possíveis caminhos para solucionar os problemas.
DC – Já existem iniciativas que buscam construir esse jornalismo mais voltado para apontar soluções?
EDPL – Nos Estados Unidos, a Solutions Journalism Network produz matérias que abordam soluções reais para os problemas sociais. A intenção é que sirvam de inspiração transformadora para a sociedade. O tradicional jornal inglês The Guardian publica um caderno especial semanal chamado The Upside, só voltado para matérias com esse teor, comprometendo-se em entregar um jornalismo que busca respostas, soluções, movimentos e iniciativas que abordam os maiores problemas que assolam o mundo. Já o The New York Times produz a coluna The Fixes, prometendo mostrar soluções para problemas sociais, como e por que funcionam.
No meio exclusivamente digital, há o portal holandês BrightVibes, que tem como missão amplificar o bem do mundo; enquanto o norte-americano Reasons to Be Cheerful apresenta-se como um tônico para tempos tumultuados e como um livro de receitas para soluções, sem restrições dietéticas.
No Brasil, há iniciativas isoladas, intuitivas, talvez não tão estruturadas conceitualmente, mas que louvavelmente contribuem, mesmo assim, para as transformações que esperamos que o jornalismo seja capaz de fazer. Alguns exemplos são o portal Só Notícia Boa e o Jornal de Boas Notícias.
DC – Autor de 15 livros e professor aposentado, por que percorrer, agora, essa desafiadora jornada em prol da comunicação construtiva?
EDPL – Estou com 69 anos, então, nessa fase, é muito comum a gente fazer uma reflexão profunda sobre a vida. Acho que a pandemia está trazendo essa oportunidade, que é essencial para todos, inclusive para os jovens de 20 anos. E precisamos entender que temos de encontrar dentro de nós um propósito para a nossa vida. Não estamos nesse planeta e tivemos a dádiva da existência, nesse momento histórico, simplesmente por causa daqueles propósitos convencionais e clássicos de antigamente, que continuam válidos, mas são insuficientes para o presente.
Porque hoje em dia, para viver, precisamos ter uma noção muito clara do efeito da nossa vida para os outros e perceber qual é a função que devemos exercer em benefício da comunidade como um todo. Então, a busca do propósito de vida é a busca de encontrar também um sentido da sua vida para o bem comum, não só para o bem imediato da sua família e dos seus contemporâneos. No meu caso, o meu propósito de vida está muito ligado à minha função profissional e pessoal no mundo e também à função externa pública que tenho como estudioso, como comunicador.
DC – Neste mês, você promoverá dois eventos on-line: um para debater o tema da intolerância e do racismo a partir do cinema e outro com a finalidade de abordar os princípios da comunicação construtiva. Como as pessoas podem participar desses eventos?
EDPL – Basta acessar o site www.edvaldopereiralima.com.br, clicar nos links dos eventos e adquirir os ingressos. O primeiro webinar acontecerá na quinta-feira, 18 de junho, às 15 horas e discutirá as histórias de vidas reais como processo de autoconhecimento e transformação pessoal a partir do filme Green Book – O Guia, vencedor do Oscar 2019. Vamos dialogar em grupo sobre a arte narrativa do storytelling aplicado ao filme, tendo como eixo o tema-título “uma amizade improvável: lições de tolerância social”.
Já o segundo webinar será realizado nos dias 23 e 25 de junho e tem como objetivo explicar conceitualmente e de maneira prática o que é a comunicação construtiva. É uma proposta que se aplica a qualquer área da comunicação, do jornalismo ao cinema, da literatura à comunicação organizacional. Por isso, o evento é direcionado a todos, porque utilizamos a comunicação no exercício de viver. A ideia é apresentar técnicas e instrumentos comprovados cientificamente para auxiliar nossas ações e direcionar nossos talentos para o que nos dá propósito e sentido.