Análise feminista de decisões do STF revela desigualdade de gênero no reconhecimento de uniões simultâneas para concessão de pensão por morte

O julgamento constrói gênero de maneira perversa e violenta em relação às mulheres, ao optar pela continuidade da utilização de terminologias como concubina e concubinato, que trazem uma forte característica de estigma social

 08/06/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 13/06/2023 as 9:30
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Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) – Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
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A problemática de gênero, nas discussões sobre o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, para o rateio da pensão por morte, é o tema deste episódio da série Mulheres e Justiça desta semana. A convidada da professora Fabiana Severi é Júlia Lenzi Silva, de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito (FD) da USP,

O grupo da professora Júlia escolheu reescrever os temas 526 e 529, recentemente decididos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), porque é característica da tratativa do Direito Previdenciário a identificação entre julgamento técnico e neutralidade. Nesse sentido, a problemática de gênero, envolvendo a discussão sobre possibilidade ou não de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas e, consequentemente, de rateio da pensão por morte, é central nesse debate. No, entanto, esclarece a pesquisadora, ela é ausente nas decisões do STF.

Júlia Lenzi Silva – Foto: Reprodução/FD-USP

A pesquisadora lembra que o impacto desse tipo de julgamento na vida e na possibilidade de sobrevivência das mulheres e de suas famílias é grande, pois 80% das pensões por mortes concedidas hoje pelo INSS têm como beneficiárias mulheres, o que faz do benefício de pensão por morte a porta de entrada para o debate de gênero no âmbito do Direito Previdenciário e, também, o principal instrumento previdenciário que assegura reprodução das mulheres e de suas famílias. “Nesse sentido, é bastante interessante perceber que o julgamento não só não trata sobre a temática de gênero a partir de uma contextualização, como ele constrói gênero de uma maneira bastante perversa e violenta em relação às mulheres, ao optar pela continuidade da utilização de terminologias como concubina e concubinato, que trazem uma forte característica de estigma social e que são fortemente prejudiciais e depreciativas em relação às mulheres.”

Coletivização de interpretação

Sobre o que torna uma reescrita feminista nesse caso, segundo Julia, foi observar o quanto o processo de coletivização de interpretação e construção de uma decisão judicial, pautado no diálogo, na troca, na interpretação coletiva do direito, foi fundamental para a qualidade técnico jurídica da reescrita. Para Julia, o primeiro grande desafio foi na verdade trazer à tona a questão de gênero como algo central, atinente à problemática que estava sendo julgada, que não apareceu nos dois julgamentos do STF. “Optamos por trabalhar com categorias muito próprias do Direito Previdenciário como beneficiários e dependentes. Nosso principal objetivo foi o de demonstrar o quanto os benefícios previdenciários são fundamentais para o combate à pobreza, à desigualdade social e, na verdade, o quanto eles são estruturantes para reprodução, com dignidade, de grande parte das famílias brasileiras, sobretudo daquelas chefiadas por mulheres.”

A pesquisadora afirma como é importante não julgar as mulheres por decisões que elas tomam que possam ser diferentes daquelas que qualquer um de nós tomaríamos em situações semelhantes. “Esta orientação foi fundamental para que nós construíssemos uma tese, juridicamente sólida, que viabilizasse as companheiras e companheiros em uniões estáveis simultâneas acessar direitos previdenciários, sem que nenhuma categoria previdenciária, nenhuma regra do direito previdenciária, altamente normatizado, fosse violado.”

A partir do uso de teorias e de métodos feministas, o exercício da reescrita acabou desvendando duas fortes percepções, diz a pesquisadora. A primeira delas diz respeito ao fato de que, para disciplinar mulheres e perpetuar o modelo monogâmico de proteção à propriedade privada, os ministros e ministras do STF, nesses dois julgamentos, transformaram um debate acerca do direito previdenciário em um debate acerca do direito de família, negando-se todo o acúmulo, teórico e hermenêutico, acerca do princípio do afeto, ou seja, da afetividade como estruturante do novo direito das famílias, a partir da perspectiva de que é o afeto, a liberdade e a autonomia, quem deve orientar toda a construção dos novos núcleos familiares.

A segunda percepção do grupo, diz Julia, foi constatar que a objetividade jurídica, no sentido mais simples, ou seja, a ideia de análise objetiva das categorias do Direito Previdenciário e a construção da decisão sobre o direito ou não ao recebimento da pensão por morte, com base nisso, teria sido suficiente para a construção de uma tese no tocante ao julgamentos, uma tese que não se apresentasse como uma violência declarada de gênero. “No entanto, essa objetividade, concebida, de maneira bastante simples, não foi possível de ser realizada por conta da alta carga moralizadora e patrimonialista em volta da temática. O que constatamos nas decisões judiciais do STF nos casos 526 e 529 passam bem longe da perspectiva técnica e neutra, que normalmente orienta a construção das teses em Direito Previdenciário, revelando-se altamente subjetiva e fortemente orientada pela moralidade, sobretudo, no sentido de disciplinamento dos corpos e das vivências afetivas das mulheres.”

Também participaram do projeto Andréa Lasevicius Moutinho; Débora de Araújo Costa; Deise Lilian Lima Martins; Irene Maestro Sarrión dos Santos Guimarães; Leila Giovana Izidoro; Maria Angélica Albuquerque Moura de Oliveira; Marianna Haug; Thamíris Evaristo Molitor, todas integrantes  do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo (DHCTEM), do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito (FD) da USP.

A série Mulheres e Justiça faz parte do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas, uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País que se presta a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.


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