Análise de decisão judicial expõe caso emblemático de prisão por furto de alimentos

O caso de prisão de uma mãe de cinco filhos em situação de rua, segundo as pesquisadoras, exemplifica uma aplicação cega, fiada e seletiva do Direito Penal e é mais um episódio do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas

 15/06/2023 - Publicado há 11 meses
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O caso escolhido para este episódio de reescrita do programa foi o de Joana, que foi acusada pela prática de furto de produtos alimentícios – Fotomontagem: Jornal da USP – Imagens: Freepik

 

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Neste episódio da série Mulheres e Justiça, a reescrita de decisão judicial sob perspectiva feminina, escolhida pelas pesquisadoras, foi a homologação em primeira instância da prisão em flagrante, convertida em preventiva, da mãe de cinco filhos e dependente química Joana. Com 41 anos e vivendo em situação de rua há mais de uma década, Joana foi acusada, mais de uma vez, pela prática de furto de produtos alimentícios. O ato, que resultou em prisão preventiva, foi o furto de dois pacotes de miojo, um refrigerante de 600 ml e um pacote de refresco em pó, no valor total de R$ 21,69. Quem conversa com a professora Fabiana Severi e fala sobre essa reescrita é a advogada Letícia Cardoso Ferreira, mestre e doutoranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprisionamentos e Liberdades (Nepal).

Sobre a escolha deste caso para ser reescrito, com perspectiva feminina, Letícia conta que é emblemático por vários motivos. Trata-se de uma mulher, mãe em situação de rua, que diversas vezes teve a sua vida atravessada pelo Estado, para destituir a guarda de seus filhos e também para processá-la por crimes insignificantes contra o patrimônio. “Essas intervenções do sistema criminal na vida de Joana não são episódicas, são recorrentes, e o último processo penal, que tem Joana como acusada, é esse da reescrita. O escolhemos por ser exemplificativo de uma aplicação cega, fiada e seletiva do Direito Penal, que move sua máquina e a economia punitiva para perseguir uma mãe com fome, que furta produtos alimentícios de valores irrisórios. Além disso, a imperatividade da criminalização se deu em um contexto de fragilidade sanitária, no caso, a covid-19.”

Repercussão midiática

Letícia Cardoso Ferreira – Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Letícia, este é um caso que, por sua grande repercussão midiática, foi interrompido logo após a denúncia pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que aplicou o princípio da insignificância. Por ter poucas decisões, as pesquisadoras escolheram a de primeira instância, que homologou a prisão em flagrante e a converteu em preventiva, e também por ser a primeira intervenção judicial no processo, além de considerarem um caso exemplar, por uma multiplicidade de questões que não foram consideradas e que envolvem a mulher criminalizada. “No caso de Joana, poderíamos mobilizar algumas discussões tipicamente feministas, especialmente a questão da maternidade, que foi ignorada na decisão original e que pela normativa penal brasileira poderia dar margem para a liberdade da acusada ou, no mínimo, para uma prisão domiciliar.”

No entanto, outras questões chamaram a atenção, como a de Joana ser uma mulher em situação de rua, ser um caso de furto famélico, ou seja, foi cometido, em tese, para sua sobrevivência, e o próprio contexto de pandemia. “A decisão nos chamava para pensar a partir de uma perspectiva interseccional, por tratar de gênero e também de classe, como questões imbricadas neste caso.”

Vulnerabilidade

Letícia conta que, na decisão original, tanto a pandemia quanto a condição de rua de Joana foram mobilizadas para reafirmar a necessidade da prisão, mas na reescrita buscou-se mudar essa perspectiva, mobilizando esses mesmos marcadores como pontos de interação com os permissivos legais, justamente para garantir a sua liberdade.

Como principal resultado, a pesquisadora aponta que foi o desfecho diferente para decretação de prisão de Joana, mais atento às posicionalidades sociais dessa mulher. A situação de vulnerabilidade em que ela se encontrava, agravada pelo contexto de uma pandemia, foi usada pela magistrada como uma justificativa para decretação da prisão. “Esses mesmos fatores poderiam ser interpretados, do ponto de vista feminista interseccional, em favor da não intervenção penal e prisional na vida de uma pessoa. Aplicar a perspectiva feminista para esse caso nos permite pensar em diversos outros casos semelhantes presentes no nosso sistema de justiça, que se multiplicam nas varas criminais brasileiras. O caso em si nos permite pensar em diversas questões de gênero, raça, classe e diversas outros marcadores que estão presentes, predominantemente, nas mulheres que são criminalizadas e aprisionadas no Brasil.”

As pesquisadoras do Nepal-Unesp têm orientação da professora Ana Gabriela Mendes Braga e participam do projeto Isabel de Oliveira Antonio, Maiane Serra, Mariana Pinto Zoccal, Paola Cristina Silva Oliveira, Vitória Garbelline Teloli.

A série Mulheres e Justiça faz parte do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas, uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País que se presta a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira -
Apoio:acadêmicas Juliana Cristina Barbosa Silveira e Sarah Beatriz Mota dos Santos-FDRP
Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br


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