“Seita” pode ser usada como nomenclatura para descredibilizar organizações menores

Nos grupos denominados como seitas, as figuras de liderança são uma peça chave para encantar e atrair participantes

 28/11/2023 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 29/11/2023 as 11:57
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Um grupo que pertence a uma igreja evangélica pode dizer que outra igreja é uma seita, porque não concorda com suas doutrinas Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
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O filme Midsommar: O mal não espera a noite, dirigido por Ari Aster e lançado em 2019, conta a história de um casal que viaja até a Suécia para participar de um festival de solstício e se depara com uma “seita” pagã. O documentário Wild, Wild Country (Netflix, 2018) retrata a história real de um líder de “seita” indiano que tenta construir uma comunidade independente nos Estados Unidos. O podcast O Ateliê, da Folha de São Paulo, expõe os abusos do fundador da escola de arte conhecida como Atelier do Centro e a “seita” criada pelo homem. 

Essas são histórias reais e ficcionais que abordam, de maneiras diferentes, o mesmo tema: grupos denominados como seitas. Constantemente, esse assunto levanta questionamentos sobre seu funcionamento, quem são seus participantes e como podem ser identificados. 

Religião, seita e culto 

Leonardo Breno Martins
– Foto: Researchgate

Segundo Leonardo Breno Martins, pesquisador na área de Psicologia da Religião do Instituto de Psicologia da USP, o termo religião pode ser definido como “grupo principal ou corrente teológica principal, como o catolicismo, o candomblé e o budismo”. Já as seitas, segundo ele, seriam ramificações dessas religiões principais, que se distanciam por inúmeros motivos. Então, esses grupos têm características próprias, mas ainda possuem traços da religião de origem. Os cultos, de acordo com Martins, não têm ligação direta com uma religião maior e são mais difíceis de serem identificados. 

A sociologia da religião, a partir dos estudos de Max Weber e Ernst Troeltsch, utilizou a nomenclatura seita de uma forma diferente. “Então, igreja ou instituição por um lado e seita, por outro lado, não seriam organismos distintos, mas, nessa sociologia da religião, seriam tipos ideais, tipologias ou ferramentas para se analisar os processos que ocorrem nos grupos religiosos”, explica Silas André Fiorotti, pesquisador do Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras e do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP. 

Então, de acordo com Fiorotti, nessa sociologia da religião, a tipologia ou instituição “igreja” possui determinadas características, como organização conservadora, aceitação da ordem vigente e ligação com classes dominantes. Já a tipologia “seita” possui outras características, como grupo fechado, ligação com classes dominadas e distanciamento da ordem social. 

Para além das definições, a nomenclatura seita muitas vezes também é usada de forma a desqualificar um grupo religioso ou organização. “Um grupo que pertence a uma igreja evangélica pode dizer que outra igreja é uma seita, porque não concorda com suas doutrinas”, aponta Fiorotti. Assim, no imaginário evangélico brasileiro, as seitas seriam aquelas igrejas que, supostamente, pregam doutrinas contrárias a determinados princípios bíblicos e não seguem a ortodoxia evangelical. 

Por que as pessoas são atraídas? 

Pessoas com visões de mundo particulares, antigamente, não encontravam tão facilmente outros grupos que compartilhassem os mesmos ideais e muitas vezes se viam isoladas do resto da sociedade. A internet, com sua imensa diversidade de assuntos e canais, permitiu que indivíduos com os mais variados pontos de vista encontrassem seus pares. Essa lógica pode ser aplicada, de certa maneira, à explicação do porquê as pessoas são atraídas para as seitas. 

De acordo com Martins, alguns dos motivos podem estar relacionados à insatisfação pessoal com a religião de origem, devido a um mau acolhimento por parte da doutrina e outros tipos de exclusão social. “Esses grupos menores têm, muitas vezes, um aspecto convidativo que é de aceitação, de possibilidade de abraçar essas pessoas que, em outros lugares, estão excluídas ou não se sentem completamente à vontade”, exemplifica Martins. 

Muitas vezes, em religiões com um maior número de seguidores, o pesquisador acredita que exista uma certa tentativa de homogeneização de crença. Na prática, acrescenta, é normal que as pessoas ainda possuam credos individuais, que podem se distanciar da crença maior. Entretanto, se esse volume de detalhes for crítico – que geram uma não aceitação naquele grupo ou uma insatisfação com o que é pregado –, os indivíduos podem se sentir compelidos a buscar outros grupos.

Figura de liderança 

Silas André Fiorotti -Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Não existe uma explicação definitiva para o aparecimento dessas organizações; entretanto, um aspecto parece se repetir em quase todos grupos denominados seitas: a presença de uma forte figura de liderança. Para Fiorotti, o desenvolvimento dos grupos religiosos está relacionado com as mudanças que ocorrem na nossa sociedade. Dessa forma, uma liderança religiosa oferece explicações para diversos acontecimentos da vida, numa linguagem religiosa ou até mesmo mágica. 

“Isto tem um potencial de encantamento, de espiritualizar e dar um sentido para a vida das pessoas. As pessoas que seguem determinada liderança religiosa podem obter ali uma sensação de segurança, parte do compartilhamento de valores como uma identidade de grupo”, explica Fiorotti. 

Martins acrescenta que, muitas vezes, essa é uma figura forte, capaz de convencer e atrair seguidores através de aspectos mais emocionais do que cognitivos. O poder, para o especialista, está na forma de como esse líder se comporta, e não necessariamente na crença que ele propaga.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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