“Juntos somos a unidade, juntos somos a esperança, juntos somos mais”

Estas foram as palavras de Gabriel Boric publicadas no Instagram no último domingo, após sua vitória na eleição para presidente no Chile

 21/12/2021 - Publicado há 2 anos
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Gabriel Boric, presidente eleito do Chile nas eleições presidenciais de 2021 – Foto: Flickr

No último domingo, 19, aconteceram as eleições presidenciais no Chile e o antagonismo entre os candidatos levou a uma campanha extremamente polarizada dividindo a população chilena entre o candidato de extrema direita, José Antonio Kast, e o de extrema esquerda, Gabriel Boric.

Ainda no domingo, por volta das 20h, com 99% dos votos computados, José Antonio Kast cumprimentou Gabriel Boric, que havia recebido 55% dos votos, cerca de 4,5 milhões de votos. O que a eleição no Chile tem em comum com os países da América Latina e, especialmente, com o Brasil?

Para José Álvaro Moisés, professor de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a decisão das eleições chilenas vai na contramão do que vinha acontecendo na América Latina desde o início desta década, que era a ascensão de políticos de tendência de extrema direita. “Havia uma tendência que revelava a ascensão de políticos de direita ou de extrema direita, em muitos casos políticos na verdade de orientação populista.”

Álvaro Moisés comenta que a eleição de Boric chama a atenção para o surgimento de uma nova esquerda, com lideranças mais jovens e comprometidas com as demandas populares. “É uma concepção de esquerda que está fazendo uma forte ênfase, não só no regime democrático, mas na valorização dos direitos humanos e na discussão de temas como maior participação da mulher, emancipação feminina e a integração das minorias, como a dos indígenas.”

José Antônio Kast e Gabriel Boric, respectivamente – Fotomontagem: Reprodução/ Flickr

O professor comenta que, quando um programa eleitoral e promessas de candidatos fazem referência a problemas ligados ao cotidiano das pessoas, mostram uma possibilidade de retorno de forças políticas alinhadas a essas demandas. “Isso pode representar uma imensa mudança, se compararmos ao que ocorreu no início desta década, não apenas na América Latina, mas também no continente europeu.”

Alberto do Amaral Junior, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito (FD) da USP, comenta que Boric moderou muito o seu discurso na reta final da campanha. “Vale lembrar que o candidato de extrema direita José Antonio Kast era herdeiro da política pinochetista, os dois tinham plataformas completamente opostas”, afirma.

“A plataforma de Gabriel Boric era combater as desigualdades sociais no Chile, que cresceram dramaticamente com o modelo neoliberal adotado pelo presidente Augusto Pinochet, e que haviam perdurado durante o governo das duas principais forças políticas que dominaram a política chilena nos anos 90 e no início deste século”, esclarece Amaral Junior.

O modelo neoliberal de governo é baseado numa pequena participação estatal, e no Chile esse modelo fez o custo de vida crescer. “Isso tudo levou a um descontentamento popular gigantesco e, somado à pandemia de 2019, desacreditou as principais lideranças políticas e as principais forças políticas dominantes na realidade chilena. Na esteira desse descontentamento surgiu tanto a extrema direita como a extrema esquerda.”

Manifestações contra o aumento do valor da passagem do transporte público, Chile, 2019 – Foto: Lucas Barbosa/ Flickr

Para Pedro Dallari, professor de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, a análise do quadro chileno deve ser feita num contexto mais geral da América Latina e fazendo uma analogia com o Brasil.

“Assim como no Brasil, após um período de grande afluência com indicadores econômicos muito positivos e com alternância de forças políticas de diferentes matizes ideológicos, mas todas elas comprometidas com a democracia, o Chile assistiu, em 2019, a grandes manifestações populares de inconformismo, com o fato de que, apesar do crescimento econômico que se vinha tendo, o quadro de desigualdade social ainda permanecia muito grande. Deu-se, nesse ano, nas ruas chilenas um processo de manifestação popular muito semelhante ao que ocorreu em 2013 no Brasil, quando também, após um período de muito crescimento da economia, e com a liderança política de partidos que, embora politicamente diferenciados, tinham uma sólida tradição democrática, a população revelou um inconformismo com o quadro de desigualdade social que persistia”, comenta Dallari.

O professor lembra ainda a coincidência dos fatos que fizeram as manifestações eclodirem e tomarem de forma volumosa as ruas dos dois países. “É curioso que esses grandes eventos, no Chile em 2019 e no Brasil em 2013, tiveram por estopim o protesto contra os reajustes nas tarifas dos ônibus urbanos. Mas, na sequência, as manifestações alcançaram uma dimensão muito maior e passaram a ser um conjunto de protestos contra o Estado”, reflete Dallari.

Manifestação contra o aumento do valor da passagem do transporte público, Brasil, 2013 – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

O professor comenta que, no Brasil, houve um desgaste enorme dos grandes partidos políticos tradicionais que não souberam perceber a dimensão da crise. PT e PSDB disputaram as eleições de 2014 em condições mais avançadas e mais hegemônicas, porém, logo em seguida vieram o impeachment de Dilma Rousseff, a crise e a falência dessas forças políticas tradicionais, que levaram à vitória da extrema direita, com Jair Bolsonaro.

“No Chile, provavelmente, inclusive com base no aprendizado que decorreu da experiência brasileira, felizmente a situação foi um pouco diferente, o desencadear foi um pouco diferente. As grandes manifestações de 2019 levaram as elites políticas chilenas a perceberem que teriam que fazer ajustes na condução da vida do país, sinalizar para a sociedade a adoção de medidas mais populares, que fossem ao encontro do anseio pela superação do quadro de desigualdade social, que no Chile é até menor que no Brasil”, diz Dallari. “Como consequência das manifestações no Chile, em 2019, houve num primeiro momento a convocação de uma Assembleia Constituinte, que está redigindo uma nova Constituição para o país procurando atender os clamores populares”, conclui o professor.

Ouça os comentários na íntegra

José Álvaro Moisés (FFLCH e IEA/USP)

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Alberto do Amaral Junior (FD/USP)

Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

Pedro Dallari (IRI/USP)

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


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