Gramática normativa X linguagem neutra: uma batalha pelo futuro da norma culta portuguesa

O Supremo Tribunal Federal derruba lei estadual que proíbe o uso de pronomes neutros nas escolas; repercussão deste fato abrange discussões mais profundas sobre a possibilidade de mudanças gramaticais no Brasil

 10/04/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 17/04/2023 as 12:40
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Pronome neutro e possibilidade de mudanças gramaticais no Brasil, não somente no âmbito da oralidade, mas também na escrita legal – Foto: Katie Rainbow/Unsplash
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“E gate roeu a roupa de vossa majestade de Roma.”

O uso da linguagem neutra em sala de aula como princípio da dignidade humana ganhou reforço com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou lei estadual que proibia o uso de pronomes neutros nas escolas. Exemplo de linguagem neutra está na frase que dá início a este texto, uma tentativa de uso inclusivo e uma demanda por igualdade.

Assim, leis estaduais ou municipais que tentem coibir o uso de pronomes neutros serão consideradas inconstitucionais. A repercussão desse fato abrange discussões mais profundas sobre a possibilidade de mudanças gramaticais no Brasil, não somente no âmbito da oralidade, mas também na escrita legal.

O Dicionário Aurélio define o neutro como “gênero das palavras ou nomes que, em certas línguas, designam os seres concebidos como não animados, em oposição aos animados, masculinos ou femininos”. A língua portuguesa se apoia no masculino genérico como referência, como é o caso de “professores”, “diretores” e “senadores” para destacar uma determinada ocupação, e, assim, em uma luta diária, a linguagem neutra foi sendo excluída da gramática portuguesa e recursos de linguagem vão sendo improvisados para recuperar a neutralidade da língua. 

Antônio Vicente Foto: Túlio Bucchioni/Jornal do Campus

O professor Antônio Vicente, do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, acredita que a questão do pronome neutro é posta de modo artificial. “A língua expressa um comportamento um tanto quanto específico, na qual o seu todo define esse comportamento. E, quando o assunto é pronome neutro, já foi predeterminado que apenas um pedaço dela será alterado, o que é problemático, uma vez que a língua é inteiramente interligada, já que a mente soma todos os elementos complexos presentes no idioma e forma uma rede, a rede da língua”, afirma o professor.

Vicente defende a tese de que ainda persistem diversas incógnitas referentes ao emprego do pronome neutro e que sua abordagem nas instituições de ensino é meramente superficial e inconsistente. Ele propõe um exercício, escrever um texto e posteriormente transcrevê-lo na linguagem neutra: “Haverá incontáveis empecilhos, dificuldades e resistências. É por isso que o pronome neutro comumente fica no simples namorade, delu e outros mais evidentes”.

O professor aborda o assunto de forma mais elucidativa. Ele explica o porquê do uso da linguagem neutra ser uma questão complexa no quesito da norma culta e divide sua resposta em três vertentes: A princípio, seu enfoque é argumentar que a linguagem pode causar problemas estruturais no idioma, uma vez que a morfologia ou a forma das palavras pode ser afetada. Ele explica que existem palavras em que o gênero é determinado pela semântica, como no caso de “lobo” e “loba” e que, nesses casos, o gênero coincide com a morfologia da palavra, mas, em alguns casos, não há distinção clara entre masculino e feminino, como em “a libido” ou “o mapa”, advertindo a complexidade ao separar as palavras em gêneros.

Em segundo, ele comenta sobre a questão da palavra e do discurso: “Uma palavra, em sua essência, é pelada de fundamento. Ela ganha sentido em um discurso, então uma palavra pode se apresentar morfologicamente muito correta, mas o discurso pode ser autoritário ou o contrário, uma vez que a ideia pode ser progressista e não utilizar das ferramentas de neutralidade linguística”.

E, por fim, ele ancora o debate em uma discussão de vocábulo e gramática. Ele condecora o vocábulo como aquele que muda facilmente em um linguajar, ele o descreve bastante funcional, posto que a sociedade se encontra em constante metamorfose e vai forjando novos conceitos a todo o instante. No entanto, ele esclarece a distinção entre vocábulo e gramática, garantindo que gírias, palavras novas, estrangeirismos e expressões não são mudanças radicais em um idioma e por isso são majoritariamente aceitos e a gramática é estável e consistente.

Ambiente escolar

Marcelo Modesto – Foto: Reprodução/Currículo Lattes

Já Marcelo Modesto, também professor do Departamento de Linguística da FFLCH, concorda com a decisão proferida pelo STF e sustenta que a implementação dos pronomes neutros deve ter início no ambiente escolar. Ele acredita ser apropriado um primeiro contato com a neutralidade da língua nas escolas, uma vez que a academia deve preparar o aluno para a vida. Ele atrela a um dever escolástico mostrar a diversidade e, com ela, trazer ao conhecimento a existência de pessoas trans e não binárias.

Uma problemática que os dois professores apontam é o fato de o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990, propor uma padronização na língua portuguesa para aproximar os falantes da língua. Marcelo Modesto diz que a adoção do pronome neutro somente no território brasileiro seria incerta e prejudicial. “Todo idioma consolidado tem uma língua legal e real. A língua portuguesa legal é burocrática e combinada entre a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Academia Portuguesa e outras de países falantes do português. Para a linguagem neutra caminhar rumo à esfera legal, seria prioritário um acordo entre todos os países falantes do português, e a probabilidade disto acontecer é quase nula.”

O professor Vicente enriquece o debate trazendo uma das premissas do escritor português José Saramago (1922-2010). “No seu livro Jangada de Pedra, o protagonista do livro, desesperado à procura de uma salvação para a Península Ibérica em razão do Imperialismo, a encontra na integração da lusofonia.” O linguista discorre sobre a importância da relação do teor oral e da escrita entre os países falantes do idioma português. “A interação não se restringe à bilateralidade entre Brasil e Portugal, ela engloba Angola, Moçambique, Cabo Verde e até países na Ásia, como Macau. Se houver a incorporação da língua neutra somente em um dos países que utilizam do idioma, a aproximação entre os países lusitanos é fragilizada, uma interação fundamental e uma troca de cultura enriquecedora se perdem.”

Diante da problemática, o professor Modesto conclui que a gramática de uma língua só pode ser alterada quando ocorrem mudanças na forma como é falada pelos falantes da língua em sua maioria. “Nada que advém de uma imposição é funcional, assim, para o pronome neutro ser incorporado na esfera legal, ele deve ser generalizado no âmbito social, familiar e cultural, pois a língua reflete o ideal da sociedade e não o contrário, assim, se todo mundo a utiliza, é inegável seu lugar na esfera legal da língua.”

A última fala do professor é embasada pela linguagem contemporânea, que fundamenta o conceito de língua viva. A linguagem começa com um sopro. O ar que vem dos pulmões é modelado por inúmeras possibilidades de abertura da boca e movimento dos lábios e da língua. Sobe, desce, entorta, recolhe. A cada mexida são formadas vogais, consoantes, sílabas, palavras. Nesse sentido, a linguagem é representada como em constante evolução e sendo modificada de acordo com o ambiente sociocultural onde o falante está inserido, permitindo que sujeitos criem suas diversas identidades e que possam ser ressignificados.

Em tom elogioso ao idioma falado, Olavo Bilac, em seu poema intitulado Língua Portuguesa, publicado em 1914, descreve a língua portuguesa como “a última flor do Lácio”, região italiana de onde emergiram outras línguas derivadas do latim vulgar. O poeta a descreve como “inculta e bela”, termo que remete às influências linguísticas que formam a língua portuguesa, “Amo-te, ó rude e doloroso idioma.”


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