Sobre a bibliodiversidade: editores, livreiros e leitores na cartografia sentimental e nos circuitos culturais da cidade

Por Marisa Midori Deaecto, professora de Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Patricia Sorel, professora da Université Paris-Nanterre, e Lívia Kalil, doutoranda na Sorbonne Nouvelle

 05/10/2021 - Publicado há 3 anos
Marisa Midori – Foto: Leonor Calasans

 

Patricia Sorel – Foto: Arquivo pessoal

 

Lívia Kalil – Foto: Arquivo pessoal

 

Poder-se-ia mesmo dizer que publicar um livro é colocá-lo no meio de uma conversa, que organizar uma editora, uma livraria, uma biblioteca, é organizar uma conversa. Uma conversa que nasce, como deve ser, da tertúlia local; mas que se abre, como deve ser, a todos os lugares e a todos os tempos.
Gabriel Zaid, Livros Demais!

“Desde minha infância lido com livros. Gosto de vê-los enfileirados nas prateleiras; gosto de acariciá-los; gosto até mesmo de lê-los”, escreve Herbert Caro. A experiência desse notável tradutor, a quem devemos, entre tantos trabalhos, o desvendamento das letras de Thomas Mann para o nosso vernáculo, traduz o sentimento de muitos ratos de livrarias, de outros tantos passantes, que fazem das livrarias um local de repouso ou de sociabilidade, ou mesmo do leitor apenas interessado em cumprir com dignidade as tarefas do programa escolar. Afinal de contas, não importa com que intensidade vivemos esse momento único de descobertas em meio às estantes dos livros. Interessa pensar, ou sonhar, que haverá sempre uma biblioteca ou uma livraria para nos acolher.

A cadeia do livro, já o dissemos, é complexa. Para ela concorrem profissionais de formação variegada, que devem atuar nos processos editoriais (revisão, preparação, edição), nas etapas de construção artística do miolo e da capa, além daqueles que se voltam para a indústria gráfica, com seus sistemas e métodos não menos complicados. Mas para que um livro chegue às nossas mãos, para que possamos sonhá-lo e “acariciá-los”, é preciso todo um concerto logístico que permite o contato dos livreiros com os distribuidores. E se tudo começa no escritor/autor, novos circuitos se abrem diante dos olhos dos leitores. O ciclo de vida de um livro não tem fim.

Em um país com dimensões continentais e marcado pelas desigualdades, a combinação de todas essas variáveis se torna ainda mais complexa, revelando, amiúde, um retrato não menos desigual e perverso do comportamento do mercado editorial, com seus reflexos sobre os hábitos do leitor. Lembremos que a Política Nacional do Livro, consubstanciada na Lei 10753/03, de 30 de outubro de 2003, buscava enfrentar esses problemas, com base no seguinte princípio: “o livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida” (Cap. I, Art. 1, parágrafo 2o).

Os artigos seguintes evidenciam um aspecto essencial das políticas públicas desde então fundadas na Lei do Livro: é preciso tocar a cadeia como um todo, pois não se promove a leitura sem que as condições de produção do livro sejam asseguradas. No mais, ao assumir a dimensão mercadológica do livro, a lei brasileira assegurava o respeito e a manutenção de condições justas de trabalho a todos os atores que se colocam, diuturnamente, na linha de frente do circuito de produção e de comercialização editorial.

Por uma Lei da Bibliodiversidade: diálogos França-Brasil

Nesse sentido, o projeto de lei Política Nacional do Livro e Regulação de Preços (PL 49/2015), em tramitação no Senado, deve ser compreendido como uma extensão da Lei do Livro de 2003. Afinal, não há livre circulação do saber, ou seja, não se pode apoiar a ampla difusão do livro em um mercado no qual as estratégias de concorrência se colocam em condições desiguais. A Lei do Preço Fixo-Único, ou Preço Comum, atende às demandas e necessidades dos profissionais do livro no que toca à equidade das condições de comercialização e de desconto, ao mesmo tempo em que enseja uma maior capilaridade das livrarias, permitindo o acesso de camadas mais densas da população a essa mercadoria nobre. Esse novo cenário faz a economia do livro girar e cria um ciclo virtuoso que se traduz numa variedade ainda maior de livros na praça. Por essa razão a lei de regulação do preço só pode ser compreendida como a Lei da Bibliodiversidade.

O PL 49/2015 se baseia na experiência francesa, implementada há 40 anos. A Lei Lang ou Lei do Preço Fixo-Único do Livro mobilizou a sociedade, em uma conjuntura marcada pela inflação, pela invasão da cultura do mass media, com os aparelhos televisores invadindo os lares domésticos, pelo discurso do direito total e irrestrito à livre concorrência – estamos na era (Margareth) Thatcher! – e pela progressão das grandes redes varejistas, com suas políticas agressivas de desconto. Houve uma campanha massiva para a formação da opinião pública e os profissionais do livro se viram unidos em torno de uma só pauta. A lei foi aprovada por quase unanimidade pelas duas câmaras francesas, em 10 de agosto de 1981. Na época, venceu o projeto que impunha a proibição de descontos superiores a 5% sobre o preço de capa de lançamentos, por um prazo de dois anos.

Ao celebrar os 40 anos da Lei Lang, pensamos em construir um diálogo de inestimável relevância para a sociedade, reforçando o vínculo histórico entre a França e o Brasil. Sem perder de vista, aliás, que a vitória francesa despertou o debate sobre o Preço Fixo-Único do livro em todo o mundo. Portugal (1996), Grécia (1997), Áustria (2000), Argentina (2001), Coreia do Sul (2002), Países Baixos (2005), Itália (2005), México (2008), Japão (2008) e Bélgica (2019) adotaram a política de regulação nos anos assinalados. Na Alemanha um sistema semelhante vigora desde 1887, mas em 2002 e em 2016 duas reformas significativas foram efetivadas, com vistas em uma melhor adequação das leis do livro às mudanças tecnológicas em curso. Na Suíça, um plebiscito selou a impossibilidade de implantação da lei em 2011, embora o debate tenha sido retomado, após o fechamento de livrarias e da crise no mercado nesses últimos anos. O Reino Unido abandonou a política de regulação em 1995. Segundo o pesquisador Markus Gerlach, a livre concorrência significou a concentração das livrarias em redes, com a consequente diminuição das livrarias independentes e o aumento do preço do livro.

O simpósio “Por uma Lei da Bibliodiversidade”, que ocorre no IEA, nos dias 13, 14 e 15 de outubro, deve pautar estas e outras questões que envolvem não apenas a política de regulação do preço do livro, mas também a cultura do livro. O momento é delicado. Nunca o mercado editorial se viu tão atingido e ameaçado. Precisamos considerar na fatura final desse governo a propaganda enganosa segundo a qual livros são artigos de luxo, logo, passíveis de tributação, contrariando uma cláusula pétrea da Constituição brasileira. Outrossim, o caráter movediço e titubeante, para dizer o mínimo, do Ministério da Educação frente aos programas, já consolidados no Brasil, de incentivo à leitura. E a extinção do Ministério da Cultura, de modo que este setor vital para a saúde e o progresso intelectual do País – mas também para a sua economia – se viu reduzido a uma pasta do Ministério do Turismo.

Sabemos que a bibliodiversidade tem a ver com a quantidade de livros, mas também com sua variedade. Em certo sentido, não parece equivocado assumir que a bibliodiversidade está diretamente relacionada ao direito universal de acesso ao livro. Como nos ensina Herbert Caro, quem vive no meio dos livros aprende a olhá-los, acariciá-los e, também, a lê-los. Para tanto, é preciso que os livros existam; mas, também, que os espaços dos livros se inscrevam em nossa cartografia sentimental e nos circuitos culturais de todas as cidades (e dos campos) desse imenso país.

Antes de fechar este artigo, uma pequena nota: Herbert Caro gostava tanto dos livros, que decidiu ser livreiro. Porém, de sua nova experiência, tirou a seguinte lição: “Verifiquei que a metamorfose que transforma um rato de livraria num livreiro representa algo mais do que um simples pulo por cima de um balcão de apenas 75 centímetros de largura. Há entre os dois uma distância tão grande que nem sequer Ademar Ferreira da Silva conseguiria transpor num salto tríplice. Estão separados por dois mundos” (p. 5-6).

Bibliodiversidade também significa reconhecer as idiossincrasias e a imprescindibilidade dos leitores e dos profissionais atuantes na cadeia produtiva do livro. A Lei da Regulação do Preço compõe uma parte desse projeto maior.


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