De Pisa-2022 a Paris-2024: algumas medalhas são mais iguais que outras

Por José Rabi e Sérgio David, professores da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP

 03/01/2024 - Publicado há 4 meses
José Rabi – Foto: Arquivo pessoal

 

Sérgio David – Foto: Arquivo pessoal

 

Via coletiva de imprensa em dezembro, o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) divulgaram resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2022. Mais uma vez testemunhamos a incessante ruína do sistema educacional brasileiro – como um todo.

No ensino superior, nós – que particularmente lecionamos disciplinas matemáticas (Cálculo Numérico e Cálculo III, na ordem de autoria deste manuscrito) – não fomos pegos de surpresa pois temos verificado em nossas carteiras estudantis as graves deficiências diagnosticadas pelo Pisa há um bom número de semestres letivos. A bem da verdade, o tsunami desta derrocada não se restringe às disciplinas supracitadas (afinal, o irrisório desempenho brasileiro no Pisa também ocorre em ciências e leitura), mas os efeitos são mais devastadores para quem está na orla dos semestres iniciais.

Para além de nossas frustrações como educadores, há aqui a disposição de externar uma preocupação mais profunda e que deveria, em nosso entendimento, alcançar de forma mais aguda e vigorosa toda uma sociedade. Tal preocupação fundamenta-se em estudos apontando para o fato de que países cuja população possui maiores níveis de habilidades cognitivas (aferidos via exames internacionais padronizados como o Pisa) apresentam crescimento econômico mais robusto e acelerado. Trabalhos indicam que diferenças de notas obtidas nesses exames entre os países representam também heterogeneidade de habilidades socioemocionais.

Em democracias, por meio do voto a sociedade delega a elaboração de políticas públicas ao Poder Legislativo e tem fé de que o Poder Executivo cumprirá seu papel executor dessas leis. Espera, por fim, que o sistema Jurídico desempenhe suas funções, dentre as quais a tutela dos direitos constitucionais. Nesse contexto, o Art. 205 da Constituição brasileira é transparente ao afirmar que “a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, (…) visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Tendo obtido nesse último Pisa resultados em que apenas 1% de seus jovens estudantes atingem alto nível de acerto em matemática e apenas 2% logram alto nível de leitura, evidentemente o Brasil está muito longe de atender ao seu princípio constitucional evidenciado pelo Art. 205 supramencionado. Importante destacar que o resultado vexatório (leia-se: sistematicamente distante da média OECD) obtido pelo Brasil nesse Pisa mais recente não é isolado. Trata-se de um histórico que nos acompanha desde a primeira edição desse reconhecido exame internacional (aplicado pela primeira vez no ano 2000).

É notório que, passados mais de 20 anos, os resultados obtidos no Pisa seguem apontando que a educação de nossos jovens permanece numa espécie de UTI e que, como sociedade (e dela emergem e por ela são eleitos os políticos), temos sido miseravelmente incapazes de obter quaisquer avanços significativos diante desse quadro devastador e sombrio. Se persistirmos sem determinação para atacar verdadeiramente tal infortúnio brasileiro, não teremos lugar no cenário mundial contemporâneo em que ciência, tecnologia e inovação são fundamentais para crescimento e desenvolvimento econômico.

No que tange especificamente à nossa área de atuação (matemática para engenheiros), se de um lado – e adaptando os Titãs – as misérias brasileiras não (nos) causam mais espanto, de outro são sempre tenebrosas quaisquer projeções a serem feitas. Uma temerária aplicação da Lei de Murphy pode infelizmente ocorrer: “Depois de as coisas terem ido de mal a pior, o ciclo se repete”, junto com seu corolário – “Nada é tão ruim que não possa piorar”. E, não obstante disfarces e maquiagens (ver adiante), as temidas sombras são verificadas no extremo da projeção: na pesquisa – seja básica ou aplicada – visando desenvolvimento tecnológico.

Se em meados do século passado a engenharia era à base de prancheta, lápis e régua de cálculo, em pleno século 21 tornou-se inconcebível (para não dizer “suicídio tecnológico”) abrir mão de sistemas computacionais. Se antes valia o bordão “na prática, a teoria é outra”, hoje em dia “nada é mais prático que uma boa teoria”. Haja vista o juízo de valor (o que vem a ser uma “boa teoria”?), eis que surge uma primeira maquiagem.

Atualmente temos testemunhado (e endeusado) o recente nascimento e o rápido crescimento da Inteligência Artificial, trazendo consigo as mais variadas ferramentas da Ciência de Dados.

Profissionais de diversas áreas (e, portanto, com os mais diferentes níveis de conhecimentos matemáticos) têm surfado na esteira dessa nova ciência, cujas ferramentas (extremamente úteis e práticas, diga-se de passagem) amiúde dispensam profundos conhecimentos matemáticos. Justamente por isso, todo o cuidado é – mas tem sido – pouco.

No jargão (em curso de estabelecimento?) deste novo ramo do saber, é comum encontrar “dados demonstram que” ou “construção de um modelo via técnica ‘X’ (rede neural, árvore de decisão, regressão linear etc.) para entender (compreender)”. Haja vista as projeções em longo prazo, surge o questionamento quanto ao uso descuidado de termos como “demonstração” (que implica em lemas e teoremas) e “entendimento” (que vai muito além de descrições matemáticas). Se em dados de desempenho de motores a combustão há forte correlação entre pressão e temperatura, a “boa e velha” Termodinâmica agradece; para de fato “entender” (na melhor significação do termo) uma série histórica de consumo de bens em uma região, convém adequada (e profunda) sinergia de competências em (ao menos) Economia, Sociologia e Psicologia. Fica a pergunta: até que ponto tal negligência semântica é indicador de deterioração do conhecimento (aferido, por exemplo, via Pisa)?

Outro efeito do declínio de conhecimentos fundamentais é o esvaziamento de áreas de atuação com maior grau de exigência de tais conhecimentos. No tocante à matemática para engenharia, no Brasil há sérios riscos de descontinuidade de linhas de pesquisa com viés em modelagem mecanicista. Nossos futuros engenheiros continuarão com know-how, mas se extinguirá know-why, em uma ode ao “mais do mesmo” acadêmico.

A possível “pá de cal” virá (quiçá paradoxalmente) da própria comunidade acadêmica se for mantido o presente status quo de (pseudo) valorização de linhas de pesquisa via atuais indicadores de citações. O que significa um artigo científico com (digamos) 500 citações? Se na correspondente área mundialmente houver (por exemplo) 50 mil publicações, tem-se 1% das possíveis citações.

Mas se é uma área com baixa adesão (algo frequente em linhas com forte caráter matemático), o percentual sobe para 10% em um universo de 5 mil artigos na área. Salienta-se que “baixa adesão” não significa “baixa importância”.

Migrando do Pisa-2022 para Paris-2024, sede dos próximos Jogos Olímpicos de Verão, a questão se assemelha a avaliar o quadro de medalhas. “Alegria do povo” no Brasil, o futebol é o esporte com o maior número de praticantes e mais uma medalha de ouro (repetindo 2016 e 2020, no masculino) será celebrada. Contudo, enquanto são necessários 11 futebolistas – só na equipe titular – para cada conquista (somem-se quantos já foram necessários desde as primeiras edições dos Jogos), a vela é a modalidade que já faturou oito medalhas de ouro. E, no cômputo geral, todas as medalhas de ouro são iguais.

Somente em 2014 o Brasil ganhou sua única Medalha Fields – mas poucos sabem quem é Artur Ávila. Peter Medawar (nascido em Petrópolis-RJ) ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia-Medicina em 1960, mas ele não é considerado brasileiro “por causa de um problema com o serviço militar obrigatório” (conforme reportagem da Folha de S.Paulo de 1996) e também por renúncia própria.

Enquanto celebramos Brasil pentacampeão Fifa, 5 argentinos já foram laureados com o Nobel: Bernardo Houssay e César Milstein em Fisiologia-Medicina, Adolfo Pérez Esquivel e Carlos Saavedra Lamas na categoria Paz, e Luis Federico Leloir em Química. Por ironia, este último nasceu na França e herdou nacionalidade argentina dos pais, ao passo que o carioca Artur Ávila se naturalizou francês.

A propósito, há uma célebre frase atribuída ao matemático francês Laurent Schwartz (também ganhador da Medalha Fields, em 1950): “O importante é entender profundamente as coisas e as relações entre elas. É nisso que reside a inteligência”. Os resultados obtidos no Pisa são categóricos em nos apontar que a educação que oferecemos aos nossos jovens no Brasil sistematicamente – e há muitos anos – não contribui para que a nossa sociedade esteja habilitada aos tão importantes entendimentos profundos.

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