O nascimento do novo século – mais simbólico que cronológico – pressupõe mudanças culturais, sociais, econômicas e tecnológicas que reorganizarão os modos de vida e, sobretudo, as políticas de controle das populações (o que Michel Foucault chamou de biopolítica), bem como as políticas de controle das mentes (que Byung-Chul Han chama de psicopolítica), e que visam à otimização da produtividade por meio da autoexploração: cada indivíduo torna-se sua própria empresa, cujo sucesso ou fracasso só depende de si.
Esses controles passam pelo uso de tecnologias que armazenam informações, chamadas big data, que podem monitorar ações e moldar comportamentos. Por exemplo, os serviços de streaming, como YouTube, Netflix, Spotify e seus congêneres, sugerem novos consumos baseados no uso pregresso que a pessoa fez da plataforma ou em informações fornecidas por ela mesma. Mas há outros usos, alguns bem invasivos, como o reconhecimento facial utilizado em aeroportos ou a segmentação de determinados públicos para envio de fake news. O Brexit, a eleição de Trump e de Bolsonaro não teriam o mesmo resultado sem a manipulação de informações falsas.
Essa realidade é agora potencializada com o surgimento da covid-19 e a necessidade de controle do deslocamento populacional para conter o avanço e as consequências da pandemia. A sociedade converteu-se em laboratórios de experimentações de diversas ordens. No campo da medicina, a crise pandêmica tem justificado testes com uma série de medicamentos, como é o caso da famosa hidroxicloroquina, mas também do Tocilizumab, originalmente prescrito para artrite reumatoide, do Remdesivir ou do uso do plasma sanguíneo com anticorpos.
Na política, o Estado de exceção ou de emergência decretado por vários governos de vários países, em nível local ou nacional, justifica uma série de medidas, mais ou menos autoritárias, não sem impacto momentâneo e, prevê-se, de longa duração. Na área da educação, a informática e a internet são os meios mais utilizados na tentativa de substituir as aulas presenciais, o que gera uma série de problemas de ordem pedagógica, já que os cursos não foram planejados para essa finalidade, ou socioeconômica, com a exposição da enorme desigualdade social e seus impactos no acesso a esses recursos, além de outras implicações relacionadas à atuação do professor ou mesmo ao ambiente familiar no qual se encontram as crianças.
Do ponto de vista econômico, os países têm testado, com a urgência que o momento exige, medidas paliativas de diferentes naturezas, mas que recolocam no centro do debate a participação do Estado na organização do mercado. Embora parte dessas ações, com mais ou menos força, se valem de políticas socialistas, de socorro aos mais vulneráveis, nenhuma delas propõe a desconstrução das políticas neoliberais que têm sistematicamente e há décadas (des)regulado o fluxo de capitais e aumentado as desigualdades sociais e a concentração de rendas entre os mais ricos.
De todos esses laboratórios decorrentes da pandemia por covid-19, nenhum tem sido mais experimental que o social, que tem testado distintos recursos para o controle das populações. O mais evidente é a recomendação de isolamento social, quarentena ou mesmo lockdown, mecanismos que coíbem ou impedem a mobilidade das pessoas. O cancelamento de voos, fechamento de fronteiras territoriais, controle dos deslocamentos são as ações visíveis dessa contenção, mas há também os controles invisíveis, como os que têm sido empregados com o rastreamento do GPS dos aparelhos celulares.
Nesse sentido, o smartphone conectado à internet e sempre ao alcance das mãos do dono, seja para comunicação nas redes sociais, busca de informações, compra de produtos ou seus outros usos previstos, tem se mostrado como o principal dispositivo de controle das populações. É como se cada pessoa, ao adquirir de vontade própria o seu aparelho de comunicação, consentisse em fornecer dados que poderão ser usados de formas muito diversas, seja para direcionar publicidade a partir de sites de busca, para fazer movimentações financeiras, ou mesmo, eventualmente, como dispositivo de espionagem a serviço dos governos. Ainda que os dados pessoais não estejam sendo usados para esse fim – ao menos é o que garantem as autoridades –, os meios para isso já estão disponíveis.
Nesse sentido, o próprio corpo físico tem sido tratado como a última barreira contra o vírus. O isolamento social, a ausência de contato interpessoal e a internalização de novos gestos, como o jeito certo de tossir ou lavar as mãos, além do rol de sintomas que deve ser observado para um eventual autodiagnóstico, tudo isso são exemplos da biopsicopolítica em curso.
Finalmente, para além dos corpos, há um outro conjunto de experimentações sendo realizadas quanto à produtividade. O teletrabalho deslocou os espaços de produção – o escritório, o laboratório, a escola etc. – para dentro de casa. Doravante, trabalha-se na sala, na cozinha ou no quarto, utiliza-se indistintamente a mesa ou a cama como plataforma de produção. Não há mais fronteiras entre o domus, o domínio do lar, e a ágora, o lugar da reunião, espaço público de interação das pessoas. A indistinção entre público e privado – há olhos que nos veem pelas câmeras – é correlata à indistinção entre o espaço doméstico e o social: conversamos com os colegas de trabalho na mesma mesa em que almoçamos com os familiares. Tornadas unidades produtivas, as casas não são mais espaços de intimidade, de descanso, de lazer ou do desenrolar da vida privada, mas a nova filial da empresa e do banco, o novo escritório, a sala de aula e o estúdio de gravação. Não se trata, como pode parecer num primeiro momento, de utilizar a casa também para o trabalho, como espaço compartilhado, mas efetivamente de sua colonização pelas forças produtivas, que finalmente passam a ter o controle integral da vida.
É por isso que o isolamento social, necessário para o combate da pandemia, não pode se tornar laboratório para novas formas de potencialização e otimização da produtividade, sob o risco de deprimir ainda mais a manifestação da vida e de suas potências dispendiosas e improdutivas. O isolamento social deve ser usado para criar novos modos de vida, o que envolve o convívio familiar, a leitura e o cultivo das artes, a diversão, a distração e o entretenimento, a revisita da memória e dos arquivos pessoais, como fotos, textos e objetos, também para o estabelecimento de redes afetivas, com amigos, familiares e outros colegas, eventualmente para novos projetos, como estudar um idioma ou aprender a tocar um instrumento musical, mas, sobretudo, para o ócio (em vez de neg-ócio). O desejável, diante dos infortúnios sanitários que nos consternam, é que possamos experimentar a vida como espaço para o cultivo de si, para a reflexão sobre o tempo e a própria existência, sobre o que somos e o que queremos, para o que é da ordem do acaso, da finitude e da efemeridade. Talvez não tenhamos outra oportunidade como essa para reinventar a vida.
A pandemia vai passar, é certo, mas não sem trazer consequências que afetarão a todas e todos, ainda que de maneira distinta. Há uma série de ameaças que vão além da infecção pelo vírus, como a recessão econômica e o desemprego, novos controles de fronteiras e da mobilidade, novas plataformas de produção e exploração do trabalho, mas também novas possibilidades de reorganização dos modos de viver. Para isso, é fundamental que impeçamos, agora, que nossas casas sejam invadidas pelos imperativos da produtividade.
Se, de fato, o que presenciamos é um rito de passagem para o século XXI, que a vigência do século nascedouro se dê pelo signo do ócio, da lentidão, do menos e do mínimo. A desaceleração da produção e do consumo, o cuidado de si e do outro, as formas mais econômicas de sobrevivência e partilha material, tudo isso, para além dos benefícios sociais e ambientais, pode ser uma via de intensificação da vida. Para isso, será preciso trabalharmos menos e vivermos melhor. E viva a preguiça!