As emissoras públicas de rádio e TV nas democracias tradicionais

Por Gislene Nogueira, doutoranda da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 02/05/2023 - Publicado há 1 ano
Gislene Nogueira – Foto: Arquivo Pessoal

 

O programa Universo das Emissoras Públicas vai trazer ao público um assunto ainda jovem para a comunicação pública no Brasil, mas antigo e consolidado em vários países da Europa e nos Estados Unidos. Diversas democracias avançadas equilibram o sistema de radiodifusão com um convívio saudável entre emissoras comerciais e emissoras públicas de rádio e de televisão.

Nos países onde atuam, as emissoras públicas de radiodifusão oferecem um discurso de prestação de serviços e cumprem uma função informativa que normalmente não cabe nas emissoras comerciais. Diferentemente das públicas, as redes comerciais de rádio e de televisão têm objetivo de lucro e dependem da audiência para vender propaganda e sustentar suas atividades.

As empresas públicas não são de propriedade privada de nenhuma pessoa e de nenhuma família. O gestor, especialista na área de radiodifusão pública e professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Eugênio Bucci, argumenta na edição de estreia do programa Universo das Emissoras Públicas que o trabalho das emissoras públicas “dá mais vigor e mais densidade para a qualidade daquilo que uma sociedade é capaz de discutir e para a qualidade dos assuntos sobre os quais essa sociedade é capaz de decidir”.

Um ecossistema midiático saudável é livre, independente e plural, afirma Guilherme Canela, chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Guilherme também participa de uma edição do programa, que estreia nesta semana na Rádio USP. Ele acredita ser fundamental incluir a discussão sobre a internet e sobre as plataformas digitais nesse contexto e defende que o sistema realmente público “é um sistema que está a serviço da cidadania e não do governo de turno”.

A principal referência do modelo público de radiodifusão é a BBC, British Broadcasting Corporation, do Reino Unido. Fundada em 1922, a BBC era inicialmente uma companhia constituída por seis empresas britânicas interessadas na fabricação e no comércio de equipamentos de rádio. Em 1926, o governo britânico transformou a companhia em uma corporação pública com direito ao monopólio das transmissões de rádio e, mais tarde, também de televisão.

O monopólio televisivo da BBC permaneceu em vigor até 1954, quando foi autorizado o funcionamento da primeira televisão comercial no país. Atualmente, vários outros canais comerciais atuam no mercado britânico, mas a BBC segue como uma referência no segmento nos quesitos de qualidade e de informação. A pesquisa Reuters Institute Digital News Report 2022 mostrou que a BBC é considerada a marca jornalística mais confiável pelos britânicos, mesmo depois de ser alvo de diversas críticas de setores da extrema direita contra a cobertura jornalística da empresa. Ano passado, a BBC completou 100 anos e segue com a missão de informar, educar e entreter o público.

A principal fonte de renda da BBC é uma taxa de licença – a license fee – cobrada de cada residência no Reino Unido. Atualmente, essa taxa está em 159 libras por ano, o equivalente a cerca de mil reais anuais. No ano fiscal britânico de 2021/2022, a BBC arrecadou 3,8 bilhões de libras ou 23,8 bilhões de reais com a taxa. Esse dinheiro é gerido pela própria empresa, que mantém diversos mecanismos de participação da sociedade em suas instâncias de governança. A BBC tem outras fontes de receita, ainda que representem um porcentual menor de participação no total do orçamento, com a venda de programas internacionalmente e com a publicidade veiculada em seus canais fora do Reino Unido.

A independência da BBC está sustentada na autonomia financeira e nos mecanismos institucionais criados para conter as pressões políticas que poderiam influenciar as decisões da empresa, afirma o jornalista, sociólogo e professor aposentado da ECA-USP, Laurindo Lalo Leal Filho, que é também autor de dois livros sobre a história da BBC e da BBC Brasil. Para o professor Lalo, a BBC “é pública porque tem um financiamento que não vem nem da propaganda, nem do tesouro e nem do governo, mas vem do cidadão”. Além disso, ele completa que existe uma série de órgãos para conter as pressões políticas na BBC “e o principal deles é o que eles chamam de BBC Trust, que é o conselho que a gente chamaria aqui de conselho curador e que é a autoridade máxima da BBC”.

O modelo britânico inspirou diversos outros governos no mundo a tratar a radiodifusão como um serviço público a que todos os cidadãos têm direito, como o acesso à educação e à saúde. Foi o que aconteceu na Alemanha depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1950, foi formada a ARD, a Associação de Empresas Públicas de Radiodifusão da República Federal da Alemanha, que reuniu as emissoras regionais do país. Depois da reunificação da Alemanha em 1990, a rede incluiu novos membros e atualmente tem nove emissoras regionais.

Como no caso da BBC, a ARD foi constituída com uma legislação que garantisse a independência da empresa em relação ao governo e ao mercado de propaganda. Os recursos da ARD são provenientes de uma taxa paga mensalmente pelos cidadãos. O valor atual é de 18,36 euros mensais, aproximadamente 100 reais por mês. A taxa gera anualmente mais de 8 bilhões de euros por ano, o equivalente a cerca de 44 bilhões de reais, que sustentam todo o sistema público de rádio e de televisão alemão, inclusive pequenos canais regionais.

O correspondente da ARD na América do Sul, Matthias Ebert, sediada no Rio de Janeiro, também foi entrevistado pelo programa. Ele contou que os canais públicos são independentes do governo federal e dos governos regionais. “A expressão exata é que estamos o mais distante possível dos governos”, ele conta. Matthias explicou que o governo participa dos conselhos de gestão da ARD juntamente com outros setores da sociedade, entre eles, “professores, sindicatos, igrejas e empresários que juntos formam o órgão supervisor de cada tevê que compõe a rede pública”.

Além da ARD, existe uma rede pública nacional de televisão sob a autoridade dos Estados nacionais que é a ZDF, Zweites Deutsches Fernsehen (Segunda Televisão Alemã, em português). A ZDF foi inaugurada em 1963. A Deutsche Welle, que tem inclusive um portal de notícias em língua portuguesa, também é um canal público alemão. No entanto, a emissora tem um caráter estatal e é sustentada exclusivamente por recursos do governo de Berlim.

Nos Estados Unidos, existem emissoras públicas de rádio e de televisão bastante influentes e respeitadas. Apesar do bem-sucedido modelo comercial de tevê, a rede pública norte-americana, a Public Broadcasting Service (PBS), conta com mais de 330 estações-membros e alcança mensalmente uma audiência de mais de 120 milhões de telespectadores e mais de 26 milhões de expectadores através de plataformas digitais.

A rede pública de rádio norte-americana, a National Public Radio (NPR), é composta de mil estações-membros espalhadas por várias regiões do país e alcança semanalmente mais de 46 milhões de ouvintes norte-americanos. O sistema público de radiodifusão dos Estados Unidos é mantido por recursos públicos e por doações de telespectadores e ouvintes. Nas próximas edições, o programa da Rádio USP vai entrevistar profissionais dessas instituições para que possam compartilhar mais detalhes sobre o serviço público que prestam.

O programa Universo das Emissoras Públicas também pretende abordar as experiências de emissoras públicas da América Latina e da África. O sistema brasileiro de radiodifusão majoritariamente comercial também é tema do programa. No Brasil, a construção de um sistema público nacional de rádio e de televisão nunca foi totalmente consolidada. A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal. No entanto, falta a regulamentação de diversos pontos da legislação.

Ainda que em menor número do que as emissoras comerciais, várias emissoras públicas atuam no Brasil. Nesse grupo estão emissoras públicas estatais, governamentais e algumas realmente públicas. Ao longo das edições, o programa da Rádio USP vai oferecer conteúdo e informação aos ouvintes para que possam participar ativamente do debate sobre as emissoras públicas brasileiras. A proposta do programa é contribuir com a discussão sobre o aprimoramento e o fortalecimento das emissoras públicas do País para que possam efetivamente educar, promover a cultura e garantir que o direito humano à informação seja garantido a todos os brasileiros.
______________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.