A fuga da guerra na busca cidadã

Por Beatriz Brandão, pós- doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 20/05/2022 - Publicado há 3 anos

“Saí do meu país sem saber para onde ia, apenas para fugir do fluxo da morte.”

Beatriz Brandão – Foto: Arquivo pessoal

 

Essa foi uma das frases que mais escutei desde o início de minha pesquisa com refugiados, em 2011. A fuga do fluxo da morte continua sendo um guia nas histórias de vida daqueles que se unem na perda do poder sobre o próprio destino. As notícias sobre a crise humanitária, devido à imigração forçada, são intensas e apenas com três meses do início de 2022 esse tema tomou espaço principal, seja nos acontecimentos internacionais como os refugiados da Ucrânia ou o caso de Moïse Kabagambe, congolês assassinado, no início do ano, no Rio de Janeiro. Todos esses movimentos apontam para crises que levam à fuga numa mesma busca: a de integração social.

Sociologicamente a integração social se refere aos laços sociais que nos vinculam, seja de filiação, participação eletiva e orgânica e o laço da cidadania. Esses vínculos se relacionam às noções de proteção e reconhecimento e à forma como estabelecemos suportes, recursos e interações. Em resumo, nos casos dos processos de imigração, ao pensarmos na busca por uma integração colocamos os questionamentos de: com quem os refugiados podem contar e para que(m) eles importam.

Os acontecimentos presentes nos levam à tentativa de uma maior compreensão dos sentidos que buscam ao se integrar. No caso de Moïse Kabagambe, ouvimos de sua mãe Lotsove Lolo Lavy Ivone: “Fugíamos da morte quando viemos para o Brasil”. Sua fala descreve o processo de partida, travessia e busca de integração em outro país. O assassinato sofrido por Moïse é parte da história de uma família que sai da República Democrática do Congo para que o exílio os trouxesse a segurança. Rumaram ao novo solo para reencontrar uma ancoragem protegida, sem a vivência da guerra. Era a fuga na busca cidadã.

Na Europa acompanhamos uma “onda de refugiados” da guerra na Ucrânia com a Rússia, abrindo nova frente do drama humanitário, que a ONU estima ser a crise de refugiados que mais cresce na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, pois a União Europeia avalia que o total de deslocamentos forçados até o final do conflito pode chegar a até oito milhões de pessoas. Tanto a entrada, quanto o percurso dos refugiados, são demarcados por uma carreira de rupturas biográficas, que resulta no enfraquecimento dos vínculos sociais, vemos assim um “quadro de desequilíbrio”, que ao chegarem em determinado país são inseridos de uma forma precária.

O continente europeu abre os desafios de absorção dos movimentos de imigração e refúgio, da mesma forma, a dificuldade de integração no Brasil se mostra em casos de vida e morte. No continente africano vemos tentativas de integração no próprio território que, na verdade, formam modernas forma de escravatura. Temos, em países como Guiné-Bissau e Senegal, crianças chamadas de “Talibés”, que são obrigadas a mendigar diariamente e são vítimas de abusos físicos. Poucas conseguem pedir ou conseguir ajuda, e a maioria sabe que é impossível ter o dinheiro que é imposto por esses falsos professores corânicos, chamados de marabouts.

No caso dos refugiados, vemos que a mudança de território expôs que existem modos de existência abertos a modos de imposição de vida, cuja permissão para se viver ocorre quando há passividade do outro lado. Moïse foi executado ao cobrar por seu trabalho realizado, porque a autonomia daquele que recorre ao seu direito tem como resposta a sua própria anulação.

O fluxo de imigrantes forçados na guerra atual, o congolês Moïse e sua família, assim como os Talibés na África, são considerados corpos-fronteiras, questionados por carregarem neles mesmos narrativas de tensão geopolíticas. São corporalidades que representam o conflito, antes mesmo do reconhecimento da vida. Não são somente os sujeitos que se deslocaram, deslocam-se os lugares com eles. A exclusão do corpo estrangeiro remete ao que a filósofa Hannah Arendt já nos dizia: a política da raça é a política da morte, amparada por um nacionalismo no argumento de proteção aos corpos.

Esses fatos nos colocam em evidência apenas os vínculos frágeis que temos em nossa sociabilidade com imigrantes, nos possibilita pensar sobre corpos-fronteira, vidas matáveis e também nas vidas choráveis, aquelas em que seu abandono são – ou não – causas de comoção. A filósofa Judith Butler nos escreve sobre as vidas “dignas” de ser choradas ao se questionar, “de quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”.

O que o choro, gerado pela revolta da violenta partida de Moïse Kabagambe ou os inúmeros ucranianos que cruzam seu território, revela sobre de que modo como nos relacionamos com essas vidas? Como disse o escritor afegão Atiq Rahimi, “o exílio não se escreve, ele se vive”. A família congolesa decidiu viver essa retirada, buscando amparo ao se exilar, encontrando o fim do exílio no próprio exílio. Cabe-nos questionar quem são os estabelecidos e os outsiders nos discursos de resistência.


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