A construção de uma campanha publicitária: público-alvo e escolhas lexicais

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 01/03/2023 - Publicado há 1 ano
Marcelo Módolo – Foto: Acervo pessoal

 

Henrique Braga – Foto: Acervo pessoal
O ator veterano Fúlvio Stefanini tem significativa participação em peças teatrais, filmes e telenovelas em seu currículo. Recentemente, aparece nas telinhas como garoto-propaganda de uma rede de farmácias paulistana. Sentado em uma cadeira, com uma espécie de jardim ao fundo, Stefanini protagoniza um monólogo em que apresenta o nome dessa rede. Num momento inicial, ele profere o seguinte: “Eu vou contar uma história pra vocês: todos os medicamentos pro controle da minha saúde, eu só compro na farmácia do meu querido amigo Sidney Oliveira. Farmácia mesmo (risos), nada de drogaria (risos)!”.

O monólogo prolonga-se por 59 segundos, quando a palavra “farmácia” é citada novamente, como forma de enfatizar a nomenclatura do novo empreendimento desse empresário paranaense que mira as classes C e D e, principalmente, os idosos, grandes consumidores de medicamentos.

Mas existem diferenças entre farmácias e drogarias?

A manipulação das farmácias

Tecnicamente, enquanto a drogaria compreenderia somente o comércio de medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais, a farmácia também poderia realizar a manipulação de medicamentos. Daí as famosas “farmácias de manipulação”, que precisam de um laboratório adequado para preparar as fórmulas receitadas pelos profissionais de saúde.

Em todo caso, não nos parece que a nomenclatura escolhida na peça publicitária se deva essencialmente a essa distinção técnica. Isso porque, embora se possa apontar um sentido especializado para cada um dos termos, “farmácia” e “drogaria” se diferenciam, na fala cotidiana, menos por sua denotação (seu significado de base) e mais por sua conotação (as impressões associadas ao termo). Ainda que as grandes redes usem com rigor o termo “drogaria”, é o termo “farmácia” que está na “língua do povo” e, desse modo, que se mostra mais propício para assumir conotação afetiva positiva, aproximando estabelecimento comercial e público-alvo.

Os velhos tempos da “pharmácia”

É sabido que as pessoas mais velhas gostam de contar histórias, sobretudo as de caráter pessoal, das quais eles foram protagonistas ou testemunhas diretas. O monólogo conduzido por Stefanini faz exatamente isso: ele diz que compra seus remédios há mais de trinta anos nessa rede de farmácias, que conhece o proprietário, que se trata de um amigo seu, de um grande empresário e por aí vai. A escolha do termo “farmácia”, em vez de “drogaria”, parece respeitar a avaliação em que o “mundo de agora” – com grandes redes de drogarias padronizadas, rápidas e impessoais – é comparado ao “mundo de antes” – com farmácias personalíssimas, acolhedoras, onde os farmacêuticos eram uma espécie de “quase-doutores” para a população.

O marketing e a escolha lexical

Em um livro pioneiro de 1991, A linguagem dos idosos (Editora Contexto), Dino Preti apresenta valiosas observações dessa “categoria social” – a qual remete aos estudos de Ecléa Bosi. Assim, se pensarmos na conversação como um jogo com regras marcadas e, não raro, negociadas previamente dentro dos parâmetros culturais de uma sociedade, a campanha publicitária acertou precisamente.

Basta relembrar que ela é encabeçada por um ator veterano, conduz uma narrativa em tom pessoal – rememorando velhos (e supostamente bons) tempos – reforça a identificação com seu público-alvo e assume oficialmente o termo “farmácia”.

Desta forma, o marketing desta rede de fármacos, além de harmonizar a ambientação com a escolha de um ator muito experiente e conhecido, acertou igualmente em uma escolha lexical que carrega mais significado para seu público-alvo mais fiel: os idosos.

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