O Brasil merece uma transição normal e pacífica

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 23/11/2022 - Publicado há 1 ano

A crônica das sucessões presidenciais é dramática no Brasil. Estamos nos aproximando de mais uma, na qual Luiz Inácio Lula da Silva tomará posse de um inédito terceiro mandato, eleito pelas urnas, depois de sair da cadeia, para onde foi mandado por sentenças eivadas de erros processuais e motivações políticas – anuladas pelo Superior Tribunal Federal.

Derrotados por 2,1 milhões de votos em 118,5 milhões, adeptos do presidente Jair Bolsonaro ainda não se conformaram com os resultados das urnas, promovendo manifestações em frente a comandos militares pelo Brasil afora, interrupção de tráfegos em estradas, contestação de resultados de urnas, apelando por viradas de mesa que não têm espaço na Constituição do País.

Sucessões, especialmente presidenciais, foram, em sua maioria, tumultuadas no Brasil, ricas em vetos e incidentes. Getúlio Vargas deu um golpe de Estado em 1930, acabando com a Velha República que nascera em 1889, e dominada pela política de café com leite na qual se sucediam políticos de São Paulo e de Minas Gerais. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, seu consulado acabou, sob o empurrão de um Exército de cabeça feita pelos vitoriosos generais norte-americanos nos campos da Europa, especialmente na Itália, onde conviveram intimamente.

O suicídio de Getúlio

Depois de um interregno de cinco anos em sua fazenda em São Borja, no Rio Grande do Sul, e apoiado, entre outras coisas, pela sua política de criação de direitos trabalhistas no País, Getúlio volta ao poder em 1950, desta vez pela via eleitoral.

Saiu do Palácio do Catete em 1954 e do mandato para o qual fora eleito no início da década, depois de dar um tiro no coração, no calor de uma ferrenha e violenta disputa política entre conservadores, de um lado, e nacionalistas, dos quais estava mais perto, do outro.

Saiu num caixão carregado por uma incalculável multidão no Rio de Janeiro e foi enterrado em São Borja, no Rio Grande do Sul. Sob discursos violentos, inclusive de Tancredo Neves, seu ministro da Justiça – que, décadas depois, morreria, em 1985, antes de tomar posse como primeiro presidente eleito em pleito indireto na esteira do fim da ditadura de 1964. Nos dois episódios, havia militares por trás ou por perto.

Na sequência da morte de Getúlio, o presidente eleito em 1955, o mineiro Juscelino Kubitscheck de Oliveira – o pé de valsa JK – teve a posse garantida pelo ministro do Exército da época, Henrique Teixeira Duffles Lott, uma espécie de fiador da legalidade. E vale registrar que JK enfrentou duas rebeliões nascidas na Aeronáutica ao longo de seu mandato. Já a passagem de JK para Jânio Quadros, a primeira que ocorreu em Brasília, foi tranquila, mas o novo presidente desancou-o no primeiro discurso que proferiu no dia seguinte, enquanto o antecessor voava para a Europa com sua esposa, Sara Kubitscheck.

Renúncia de Jânio Quadros

Ao invés de fortalecer a República, Jânio Quadros semeou um grande imbróglio ao renunciar ao cargo em agosto de 1961, tentando um golpe de Estado, pois esperava ser reconduzido ao cargo por multidões e, graças a isso, superar as resistências às suas políticas interpostas por um Congresso conservador. Os parlamentares foram mais rápidos e aceitaram sua renúncia.

Esse mesmo parlamento aderiu rapidamente ao golpe orquestrado pelos militares, em 31 de março de 1964, visando a afastar o vice-presidente de Jânio Quadros, o petebista João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas, que o substituíra após a renúncia. Naqueles tempos eleitorais, podia-se eleger presidente de uma chapa, no caso de Jânio a conservadora União Democrática Nacional, e vice-presidente de outra, no de Jango, o Partido Trabalhista Brasileiro, o braço popular do varguismo. Jango, que engolira a solução do parlamentarismo, palatável para os militares como solução para que ele substituísse Jânio, ganhou mais tarde um plebiscito que lhe devolveu a Presidência. Mas o entrechoque entre uma política presidencial voltada à esquerda e o conservadorismo de partes substantivas da sociedade e das Forças Armadas levou ao golpe de 1964.

As sucessões presidenciais dentro do regime militar se deram em disputas intramuros, só o último dos presidentes generais, João Figueiredo, levou a cabo o projeto de distensão lenta, gradual e segura, apadrinhado por seu antecessor, Ernesto Geisel. A abertura desembocou na eleição indireta de um civil pelo Colégio Eleitoral da época. E voltamos a Tancredo Neves, já citado na abertura deste texto, que acabou substituído pelo vice-presidente José Sarney, que se transferiu das hostes do regime militar para a Nova República que Tancredo não chegou a presidir.

Uma multidão de ternos escuros

Nos 25 anos da Nova República, houve nada menos do que dois impeachments, o que não é pouco. O primeiro afastado foi Fernando Collor, que saiu de Alagoas com a fama de implacável “caçador de marajás” e, no mandato, se incompatibilizou com o Congresso e a sociedade, em função da arrogância de sua postura no Palácio do Planalto. A segunda, Dilma Rousseff, eleita na carona do prestígio de Lula, mas sem o seu talento político conciliador, muito pelo contrário. Acabou sendo “impichada” por um Congresso, como sempre conservador, por decisões orçamentárias questionáveis, mas perfeitamente superáveis via diálogo. Seu sucessor, Michel Temer, minou-a durante esse processo, a partir de sua privilegiada posição de vice-presidente da República, e herdou o cargo. Nunca me esqueci da impressão preocupante que uma foto de beija-mão de Temer me causou: uma multidão de políticos vestidos de ternos escuros, ninguém em tons claros, o cercava para cumprimentá-lo.

É inevitável, pelo menos para mim, ter saudades das transições entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, muito civilizadas, até que a disputa pelos louros de bem governar envenenou as relações entre os então partidos dominantes, PSDB e PT, dando espaço para o discurso sobre “heranças malditas”.

Correndo por fora, e ajudado por um até hoje inexplicado atentado à faca, Jair Bolsonaro ganha o direito de ocupar o Palácio do Planalto, sem ter o mínimo preparo, nem equipe para presidir o País – beneficiado por Lula ainda estar preso, afastado judicial e propositadamente da disputa. O afastamento e a ojeriza de parcela significativa do eleitorado pelo Partido dos Trabalhadores prejudicam a performance de seu candidato, Fernando Haddad.

Hoje, quatro anos depois do último pleito, Lula, judicialmente livre, e Bolsonaro, desprestigiado pela fragilidade de seu errático governo, o petista conquista o direito de voltar ao Palácio do Planalto, pela terceira vez, agora à frente de uma ampla aliança política.

Metade do País quer mudar

Foi uma vitória apertada, como já visto, mas revelando que metade do eleitorado do País quer garantir rumos democráticos, social e economicamente justos para a Nação, deixando o último quadriênio para trás. Mas há diversos sinais de que o poder derrotado, que fala muito em liberdades, mas tem vocação e práticas autoritárias, manifesta inconformismo com o resultado e busca tumultuar, por diversos meios, sua aceitação natural e pacífica.

A atual discussão no Congresso, majoritariamente conservador, em torno da aprovação do Projeto de Emenda Constitucional da Transição é a manifestação legislativa do método de criar dificuldades para o novo governo ou levar alguma vantagem nessa barganha. Até aí, faz parte do jogo. Para o bem do País, é bom que não vá além disso, ao contrário das experiências já vividas na nossa história.


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