Os precatórios e a degradação da Constituição

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 10/10/2023 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 17/10/2023 as 16:46

Com a proposta das autoridades fazendárias de tentar encontrar uma saída para a questão dos precatórios, um problema que pode deixar uma dívida bilionária a ser dentro de quatro anos, a história mais uma vez se repete: independentemente de suas diretrizes ideológicas, os governos nossos acostumaram-se a buscar atalhos e se valer de jeitinhos para contornar determinações constitucionais, sempre se valendo da premissa de que os fins justificariam os meios.

Com o coração e a mente voltados à campanha pela reeleição em 2022, o último governo desrespeitou os princípios básicos de gestão das finanças públicas e negociou com o Centrão a aprovação, em 2021, da Proposta de Emenda Constitucional nº 114. Ela introduziu um limite anual válido até 2026 para o pagamento de precatórios – as obrigações decorrentes de sentenças judiciais transitadas em julgado. O calote tinha por objetivo abrir espaço no orçamento para que o governo pudesse gastar mais num ano eleitoral.

Agora, como as estimativas são de que em 2027 o valor dos precatórios a ser pago será de R$ 250 bilhões, o atual governo fez uma proposta para tentar colocar em dia parte dos pagamentos postergados. O problema é que ela prevê o registro na despesa primária apenas do valor principal dessas dívidas, sem corrigir a inflação. Também classifica como despesa financeira o restante dos encargos, contrariando as regras que disciplinam o modo de apuração da despesa primária. Por fim, como essas medidas carecem de base constitucional, o governo, por um lado, pediu ao Tribunal de Contas da União que endosse a constitucionalidade da proposta, o que foge à competência funcional da corte. Por outro lado, outro, o governo – via a Advocacia-Geral da União – protocolou no Supremo Tribunal Federal um pedido para que declare a inconstitucionalidade do teto dos precatórios fixado pela PEC nº 114/21.

O governo poderia propor uma nova PEC para alterar os critérios de pagamento dos precatórios, mas não o fez por não ter confiança em sua base de apoio no Congresso. Desde então, ministros e líderes governistas vêm pressionando o STF a interpretar a Constituição não ao pé da letra, mas de modo extensivo, sob a justificativa da necessidade de desarme dessa bomba fiscal.

Se a PEC do governo anterior que restringiu o pagamento dos precatórios até 2026 foi calote, as manobras do atual governo para tentar emplacar uma proposta discutível juridicamente são um exemplo dos efeitos corrosivos da cultura do jeitinho. Afinal, quanto mais comum se torna essa prática, maior é o risco de degradação da Constituição que entrou em vigor com a redemocratização do País. Promulgada em 1988, ela abriga diversas aspirações e regras para o funcionamento das instituições, da economia e da vida social.

Como a sociedade brasileira é complexa, heterogênea e desigual, ao estabelecer direitos, proteger interesses e distribuir poderes, a Constituição foi produto de um processo de conciliação entre as diferentes forças políticas que moldaram a transição do autoritarismo militar para a democracia. Contudo, não foi fruto de um pacto simétrico de mútuos interesses, mas uma estratégia de estabilização de uma ordem assimétrica. A um só tempo detalhista e programática, tendo constitucionalizado um sem-número de normas tributárias e fiscais que estavam na legislação infraconstitucional e com muitos problemas de antinomia, uma vez que foi produto de um pacto assimétrico, a Constituição carece de unidade sistêmica por ter sido concebida mais por vizinhança de assuntos do que por um fio condutor lógico.

Todavia, apesar de conter medidas que não asseguram condições de estabilidade e permanência no tratamento dispensado a determinadas matérias, bem ou mal ela se revelou eficaz em seus primeiros 25 anos de vigência. Se, por um lado, a coexistência do abstrato e genérico (sob a forma de normas programáticas) com o específico e o vinculante (sob a forma de regras) acarretou problemas de governabilidade, por outro, o instituto da Proposta de Emenda Constitucional foi o instrumento jurídico concebido para propiciar a adequação do texto da Carta à evolução da complexidade do País. Entre a entrada em vigor da Constituição e 2022, já foram aprovadas 116 emendas constitucionais. É um número excessivo. Tantas PECs não podem acabar introduzindo na Constituição normas que contrariam seu espírito, desfigurando-a?

Em princípio todo texto constitucional deve estar aberto a uma revisão ou sujeito a receber emendas, seja porque a realidade para a qual ele foi concebido é suscetível a transformações estruturais, seja porque sem revisões a vontade política de uma geração se impõe sobre as gerações seguintes de modo ilegítimo. Evidentemente, se permanecer intocada ao longo do tempo, a Constituição é ultrapassada pelos fatos, tendendo à ineficácia. Mas, se for alterada demais, e na mesma velocidade em que esses fatos vão ocorrendo, o texto constitucional tende a ser relativizado como marco normativo.

Em princípio, mudanças feitas por meio de PECs são condição para que uma Constituição possa perdurar, cumprindo seu papel de definir as estruturas do regime político, os direitos individuais, as liberdades públicas, as regras eleitorais e os marcos normativos das finanças públicas. Em outras palavras, ao permitir a combinação entre estabilidade e flexibilidade, a possibilidade de emendar um texto constitucional é condição necessária, ainda que não suficiente, para sua vocação de estabilização das instituições. É por isso que as exigências para a aprovação de uma PEC são mais complexas do que as regras para mudanças da legislação infraconstitucional, o que protege a Constituição de alterações fundadas por razões conjunturais. Graças a essas exigências, estabelecendo quem pode apresentar uma PEC e definindo as regras sobre tramitação e votação, é que uma Constituição consegue se preservar, ao mesmo tempo em que se adapta a uma nova realidade, preservando sua força normativa.

Pelo artigo 60 da Constituição, as PECs são discutidas e votadas na Câmara e no Senado em dois turnos. Para serem aprovadas, necessitam de 3/5 dos integrantes de cada casa. Mas, como a Constituição não definiu o prazo entre a primeira e a segunda votação, o lapso temporal ficou a cargo do regimento interno da Câmara e do Senado. No caso da Câmara, a previsão regimental é de um interstício de cinco sessões entre o primeiro e o segundo turno. No caso do Senado, há a obrigatoriedade de um intervalo de pelo menos cinco dias úteis entre as duas votações.

Na prática, porém, quando seus interesses eleitoreiros e políticos estão em jogo, nem sempre senadores e deputados seguem o próprio regimento. Em 2022, o Senado realizou os dois turnos num único dia e com menos de uma hora de diferença entre eles. Na Câmara, o regimento muitas vezes é desprezado, com as cinco sessões exigidas sendo realizadas em dois ou até mesmo em um único dia. Esses expedientes desmoralizam as regras de tramitação das PECs. E, quando foi acionado para exigir que as duas casas legislativas seguissem seus respectivos regimentos, o STF saiu pela tangente. A corte alegou que discussões sobre o desrespeito ao regimento interno são questões interna corporis de cada casa, não configurando matéria constitucional.

Esse argumento agride a lógica. A banalização do desrespeito da Câmara e do Senado aos seus regimentos mostra como a Constituição está sujeita a interesses imediatistas. Não é por acaso que, até o final de 2022, tramitavam no Legislativo mais de 1,3 mil PECs. Formuladas mais por razões conjunturais do que por razões estruturais, essas PECs não são emendas, no sentido etimológico do termo. Elas não passam de uma sucessão de novos artigos de um texto constitucional que vai sendo reescrito no dia a dia. Na legislatura passada, por exemplo, foram aprovadas PECs que criaram piso salarial para enfermeiros e desoneraram igrejas.

Se nas primeiras décadas de vigência a Constituição funcionou relativamente bem, agora, ao completar 35 anos, a hipermutabilidade de suas normas acarreta uma insegurança generalizada, entreabre a deterioração do processo legislativo e mina a autoridade normativa da Constituição e sua capacidade de estabilizar expectativas. Ela pode até sobreviver na forma. Por dentro, contudo, está apodrecendo.
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