O bolsonarismo e o financiamento das universidades públicas paulistas

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 24/07/2023 - Publicado há 9 meses

Depois de ter criado uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as três universidades públicas paulistas, em 2019, a bancada bolsonarista da Assembleia Legislativa de São Paulo – que hoje conta com 19 dos 94 deputados estaduais – agora está questionando os gastos dessas instituições e se mobilizando para cercear suas fontes de financiamento. Sob a justificativa de que a USP, a Unicamp e a Unesp promovem aparelhamento político e doutrinação de alunos com base em ideias sobre raça, gênero e sexualidade, eles querem aproveitar a substituição gradual do ICMS – de cuja receita as três universidades públicas paulistas têm direito a 9,57% – pelo Imposto de Valor Agregado, prevista pela reforma tributária recém aprovada pela Câmara, para asfixiá-las financeiramente. Pretendem, igualmente, aproveitar a ocasião para tentar limitar a autonomia administrativa das três instituições.

Com uma visão de mundo da altura de um rodapé, o bolsonarismo sempre foi incapaz de entender que a Universidade Pública é um espaço autônomo de poder político e econômico, de liberdade de pesquisa e criação em todos os campos do conhecimento, de pluralidade de identidades e ideologias e de estímulo à formação de um pensamento crítico. Também não compreende que, além de sua função formativa, a Universidade Pública não pode deixar de se pronunciar sobre temas complexos e, principalmente, controversos, que sempre têm algum viés político. Ignoram ainda que, como a ausência de um pronunciamento não significa necessariamente neutralidade ou imparcialidade, a opção pelo silêncio por uma Universidade Pública seria uma demonstração de covardia.

O mais espantoso no bolsonarismo não é sua arrogância e petulância, expressas pela aversão a projetos pedagógicos e desenvolvimento de pesquisas científicas. É, acima de tudo, sua ignorância. Nas ruas, nos meios de comunicação e nas casas legislativas, as hordas bolsonaristas se revelam despreparadas, carecem de informação técnico-jurídica, pecam por falta de argumentos lógicos e primam por lugares-comuns ou clichês expressos – como a palavra “comunista” – e por uma linguagem quase sempre chula. Defendem um conhecimento isento de juízos de valor, sem compreender que, por um lado, o conhecimento é em si mesmo uma prática social cujo labor é contribuir para suas transformações. E, por outro, que a verdade de cada conhecimento está na sua adequação à prática que tem por objetivo constituir.

Esse pessoal também esquece que professores e cientistas são, ao mesmo tempo, cidadãos e profissionais cujo trabalho é afetado pelas conexões que os vinculam com o pensamento e a sociedade, com a teoria e a história, com o processo de conhecimento e com o impacto das inovações científicas na vida social. Por isso, professores e cientistas não ficam indiferentes ao que ocorre com a utilização de suas descobertas. E anda têm plena consciência, como afirmava há mais de quatro décadas um dos mais legendários docentes que a USP já teve, Florestan Fernandes, da “importância de converter teoria em força cultural e política, criando condições para que ela opere a partir de dentro e através de ações concretas de grupos e classes sociais”.

Por isso, a iniciativa da bancada bolsonarista na Assembleia Legislativa de São Paulo não surpreende. Também não é original. Por sua estultice ideológica e por seu moralismo hipócrita, o bolsonarismo primou pelo obscurantismo nos quatro tristes anos em que o comandou o país. Tentou, por exemplo, mercantilizar o ensino e a produção acadêmica. Esvaziar as agências de fomento científico-tecnológico e expurgar livros de bibliotecas. Reduzir a autonomia acadêmica das instituições federais de ensino superior e limitar as tarefas de extensão universitária voltadas às necessidades sociais. Substituir órgãos e conselhos representativos integrados por docentes, discentes e funcionários por uma gestão tecnocrática. Patrocinar guerras pedagógicas e impor um modo disfarçado de censura sob a forma de negação de recursos para elaboração de pesquisas e para publicação de papers e teses. E cercear a liberdade imaginativa, negar a ciência e os espaços comunitários e de intersubjetividade política que estão na essência da vida acadêmica.

Como disse o professor Marco Aurélio Nogueira, quando a Unesp completou 40 anos de existência, nenhuma Universidade Pública prescinde dos elementos de cultura que carrega consigo. A cultura acadêmica fornece a moldura geral e, dentro de cada universidade, compõe seus valores, seu modo de agir, administrar, decidir, pesquisa e ensinar. Forma assim sua identidade, sua personalidade institucional, concluiu. É daí, de sua dimensão imaterial e simbólica inerente à sua capacidade de reflexão teórica, de seu processo de interpretação da dinâmica da realidade social, do desvendamento de suas tendências e da análise das interpretações prevalecentes que a universidade pública extrai sua autoridade e sua legitimidade.

Foi justamente a força advinda da conjunção de autoridade com legitimidade que permitiu às universidades federais sobreviverem ao furor bolsonarista. E é também dessa mesma força que a USP, a Unicamp e a Unesp conseguirão deter o esforço da bancada bolsonarista na Assembleia Legislativa de São Paulo para cortar seus recursos. Nunca é demais lembrar que, nos países sem produção científica robusta advinda por seu sistema de ensino superior, especialmente no âmbito da Universidade Pública, a democracia costuma enfrentar dificuldades para se consolidar. É importante recordar que, apesar de professores de uma ou outra universidade pública terem apoiado e até servido à ditadura militar, a maioria – e entre elas a USP, a Unicamp e a Unesp – conseguiu manter vivo o projeto de redemocratização no sombrio período de 1964 a 1985.

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