Democracia e tensão federativa

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 10/08/2023 - Publicado há 9 meses

Por mais politicamente desastrosa que tenha sido a fala do governador mineiro Romeu Zema (Novo), propondo uma aliança entre os Estados das regiões Sul e Sudeste para enfrentar os Estados das regiões Norte e Nordeste no caso da reforma tributária, a tensão federativa é antiga na vida do País. Há pouco menos de um século, por exemplo, ao afirmar que se não pudesse assumir a hegemonia política no País, já que detinha a hegemonia econômica, São Paulo deveria se separar do resto do país, o escritor Monteiro Lobato foi claro. “Aceitemos Hobbes. Sejamos lobos contra lobos; lobos gordos contra lobos famintos”, afirmou.

Muitos anos depois, na edição de 18 de maio de 1975, o jornal O Estado de S. Paulo, que na época de Júlio de Mesquita Filho se referia ao Nordeste como “a triste região”, publicaria um editorial sobre essa questão. Intitulado Brasil e São Paulo, o editorial defendia a prevalência do centro decisório de São Paulo sobre as formas organizadas da vida social moderna. Também acusava a ditadura getulista entre 1930 e 1945 de ter obstruído a renovação cultural e política do Brasil, baseando-se na premissa varguista de que os Estados economicamente fracos do Norte e Nordeste deveriam ser politicamente fortes, enquanto os Estados economicamente fortes deveriam ser politicamente fracos, para criar uma situação de equilíbrio e neutralizar os riscos de secessão, como ocorreu com a revolução de 1932.

Apesar de longo, há nesse texto um parágrafo que merece ser relembrado.

“Era São Paulo – e mais genericamente no complexo econômico-cultural do Centro Sul – que se deveria buscar inspiração para qualquer política que visasse aprimorar o regime. Para quem se debruça sobre as realidades sociais e as procura compreender de uma perspectiva global, é em São Paulo, e por extensão no Centro-Sul, que se encontram presentes as condições de florescimento de uma civilização material adaptada aos progressos gerais do Ocidente e uma cultura capaz de se traduzir politicamente num sistema liberal-democrático de governo. São Paulo, desse ponto de vista, é o centro onde se deram dois grandes, sem conflitos de maior monta, dois grandes processos sociais: a incorporação de grandes correntes migratórias, das mais diversas procedências nacionais e étnicas à população; e a integração, sem dúvida com lutas memoráveis, dos setores operários ao conjunto da sociedade.”

Seja o argumento procedente ou não, o que está por trás dessas palavras é uma crítica à perversão do modelo de organização político-institucional. Baseado originariamente em um sistema bicameral inspirado na Constituição americana de 1787, ele prevê duas casas legislativas: a Câmara, que representaria a sociedade, e o Senado, que representaria os Estados. Para a distribuição dos assentos na Câmara prevê-se uma formulada matemática que garanta a cada região o número proporcional. No caso do Senado, independentemente de suas desigualdades populacionais, cada Estado tem três assentos, o que asseguraria um certo equilíbrio nas decisões do Poder Legislativo.

O problema é que, do Getúlio pós-30 à Constituinte de 1987/88, a criação de novos Estados nas regiões Norte e Centro-Oeste afetou esse equilíbrio. Na década de 1960, por exemplo, foram criados os Estados do Acre e Rondônia, o que assegurou à região Norte mais duas bancadas na Câmara e seis vagas no Senado. Em 1977, a ditadura militar dividiu Mato Grosso em dois Estados, o que assegurou mais uma bancada de deputados e mais três senadores para a região Centro-Oeste. Dois anos antes, a ditadura fundira os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, fechando uma bancada da região Sudeste na Câmara e no Senado. Com a Constituinte, foram criados os Estados do Amapá e Roraima, no Norte; e Tocantins, no Centro-Oeste; e concedido ao Distrito Federal o direito à representação do Congresso.

Alguns números extraídos das estatísticas oficiais em 2021 ajudam a compreender o impacto dessa multiplicação de bancadas. Com 43,7% da população brasileira, 42,5% do eleitorado nacional e 29,8% do PIB do País, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste têm 74%, dos assentos no Senado e 50,1% dos assentos na Câmara. Com 56,3% da população brasileira, 57% do eleitorado e 70,2% do PIB, as regiões Sudeste e Sul têm apenas 26% dos assentos no Senado e 49,9% dos assentos na Câmara. Há alguns anos, o adido político de um importante país europeu indagou-me as razões que impediam os Estados mais desenvolvidos do País de terem a força política necessária para aprovar PECs voltadas às necessidades de uma economia moderna. Também perguntou o quanto paroquial é a votação do Orçamento da União, dados os vícios de representatividade no Legislativo.

Lembrei a ele que, como o quórum para se rever ou emendar a Constituição é alto, exigindo em duas votações na Câmara e em duas votações no Senado 3/5 dos votos, só a região Norte, que à época tinha menos de 5% do eleitorado brasileiro, mas detinha 22,3% de representação do Congresso, na prática possuía poder de veto. Decorre daí a força de políticos como Davi Alcolumbre e o clã da família Barbalho durante votações das PECs de interesse das regiões Sudeste e Sul. Também decorrem daí as dificuldades enfrentadas pelo presidente Lula para governar. Ele é obrigado a negociar com coronéis locais, oligarcas regionais, controladores de currais eleitorais e pastores evangélicos para ter seus projetos aprovados. Depende dos Lyras, dos Calheiros e dos Fufucas da vida para assegurar a governabilidade do País.

Nesse cenário em que o mandonismo local se liga ao domínio da elite federal e esta, para se manter no poder, depende do apoio das oligarquias regionais, a composição de um ministério sempre acaba resultando num amontoado de feudos controlados pelas mais diversas facções políticas. Infelizmente, esse é o motivo pelo qual o Executivo se converteu em um poder sem objetivos e metas claramente definidos, dada a dificuldade de estabelecer diretrizes, coordenar ações e definir estratégias de médio e de longo prazo. Ao tocar nesse problema de modo desastroso e inconsequente, o governador mineiro só o agravou. Mas nem por isso essa discussão – que já foi feita de modo exemplar por Celso Furtado em Obstáculos políticos ao crescimento econômico no Brasil, uma conferência realizada em 1965 no Royal Institute of International Affairs, e por Simon Schwartzman em seu livro São Paulo e o Estado Nacional, originariamente apresentado como tese de doutorado em Berkeley, em 1973 – pode ser desprezada.

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