Enquanto parlamentares da extrema direita afirmam que o ex-presidente Jair Bolsonaro disputará as eleições de 2026, alegando que o Congresso aprovará uma anistia ampla e irrestrita, colunistas simpatizantes do bolsonarismo continuam escrevendo em jornais e revistas que a ordem jurídica do País foi destruída pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente por causa de suas decisões no caso do atentado à democracia em 8 de janeiro de 2023. Também alegam que as decisões tomadas pela corte nesse caso são infundadas e acima de tudo injustas, uma vez que, no seu modo de ver, uma parcela considerável dos participantes não seria extremista nem defensora de uma ditadura militar, mas cidadãos que… exigiram respeito à Constituição, à liberdade de expressão e ao ordenamento jurídico.
Mais do que contraditório, esse argumento prima pelo cinismo. Além de asseverar de modo cândido que os afrontadores do regime democrático no atentado de 8 de janeiro de 2023 somente estavam almejando um país sem repressões infundadas, e não o afastamento do presidente eleito que tomara posse uma semana antes e a continuidade do presidente derrotado à frente do Palácio do Planalto, esses colunistas vêm enfatizando que o Supremo Tribunal Federal — cujo plenário foi selvagemente destruído naquele dia sombrio — estaria surdo aos clamores da cidadania. Na mesma linha, também acusaram a cúpula do Poder Judiciário de cometer excessos, entreabrindo assim sua simpatia pela tese da anistia, por um lado, e pela aprovação do impeachment de ministros da corte suprema.
Ao reivindicar a desresponsabilização dos vândalos de 8 de janeiro de 2023 por seus atos ofensivos à ordem constitucional e ao regime democrático, esses colunistas se esquecem de que, em vez de ser um mecanismo de pacificação da vida social e política do País, a anistia apenas consagra a ética maquiavélica de que os fins justificam os meios. Trata-se de uma ética incompatível com o Estado democrático de Direito. Essa proposta ignóbil é apenas uma das consequências, após o retorno do País à democracia em 1985, da contemporização da violência e dos crimes cometidos durante duas décadas do regime militar.
Nunca é demais lembrar acontecimentos ocorridos após a queda da ditadura militar e a redemocratização do País, especialmente o debate sobre a responsabilização judicial dos envolvidos nos trabalhos mais sujos, baixos e perversos daquele período sombrio. Como é sabido, as Forças Armadas não foram devidamente enquadradas. Nem, muito menos, jurídica e judicialmente incriminadas. Com isso, os militares continuaram acreditando que ainda detêm um “poder moderador” nos mesmos moldes daquele que foi previsto pela Constituição imperial outorgada em 1824 por D. Pedro I, o que até hoje lhes permitiria desestabilizar as instituições democráticas e a ordem jurídica quando seus interesses e suas vontades não forem atendidos. Não foi por acaso que o historiador José Murilo de Carvalho sempre definiu o poder moderador como um poder desestabilizador.
Também é pelo mesmo motivo que até hoje, apesar de a ordem jurídica prever mecanismos de controle que limitam o exercício do poder no País, dirigentes eleitos em períodos democráticos carecem de força quando precisam enquadrar oficiais que desprezam a Constituição que prometeram cumprir. Em vez de exercer sua autoridade, muitos governantes contemporizam, contentando-se com negociações e concessões destinadas a evitar punições exemplares. Não compreendem assim que, quanto mais lenientes são e quanto mais se deixam levar por propostas de anistia e de indulto, mais abrem caminho para novas instabilidades, enfraquecendo desse modo seu poder e suas competências legais.
Essa é a lição da história que o País tem de aprender, independentemente das opiniões daqueles falsos cândidos que veem nos golpistas de 8 de janeiro de 2023 apenas um bem-intencionado grupo de cidadãos insatisfeitos com as decisões do Supremo Tribunal Federal e com o que chamam de corporativismo doentio de seus ministros. Quem viveu sob a ditadura militar iniciada em 1964, encarando-a a partir da redação de um jornal importante e do pátio de uma faculdade da USP da qual se tornaria professor titular e chefe de um de seus departamentos, como é meu caso, conhece — por experiência de vida e por formação acadêmica — os riscos e os perigos da contemporização em que tudo que se refere ao princípio da responsabilidade na vida pública.
A história brasileira ensina que, quando não há punição exemplar para quem atenta contra as instituições democráticas e quando se passa candidamente a mão na cabeça de gente inconsequente, relegando para segundo plano sua violência destrutiva, o regime democrático e o Estado de Direito sempre acabarão sendo enfraquecidos. Esse é o preço que o País até hoje continua pagando por não ter desenvolvido, ao longo de sucessivas gerações, uma cultura sobre as brutalidades e os crimes cometidos por quem defende regimes ditatoriais e, graças à anistia, não é responsabilizado pelos males que comete e pela violência que pratica.
Dito de outro modo, se o País tivesse se desenvolvido subordinando todos – inclusive militares – ao império da lei, ele certamente teria se desenvolvido de um modo mais democraticamente consistente, no plano institucional. E, igualmente, teria tido um destino menos dramático e menos sujeito a golpes e intervenções militares.
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