Cipreste Triste, de Agatha Christie: uma narrativa em quatro tempos

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 06/12/2023 - Publicado há 5 meses

A desordem reconduzida à ordem e esta voltando à desordem; a irracionalidade perturbando a racionalidade; a racionalidade restaurada após as sublevações irracionais: aí está o cerne da ideologia do romance policial (Ernest Mandel).

O romance Cipreste Triste (Sad Cypress) foi publicado no Reino Unido em 1940. O leitor familiarizado com a extensa obra policial de Agatha Christie (1890-1976) provavelmente o reconhecerá como uma das tramas mais engenhosas da escritora.

O enredo gira em torno de duas mortes: a de Laura Welman, que estava com a saúde debilitada havia algum tempo, e a de Mary Gerrard, jovem agregada da família que vinha sendo protegida e beneficiada financeiramente pela Sra. Welman. Dentre as personagens principais, temos Elinor Carlisle (sobrinha de Laura Welman) e Roderick Welman (sobrinho do falecido marido de Laura) – que conviviam desde pequenos e pretendiam se casar –, além das enfermeiras O’Brien e Hopkins, que se revezavam nos cuidados da Sra. Laura sob a supervisão do médico Peter Lord.

Disposto em vinte e sete seções (o prólogo mais vinte e seis capítulos), o enredo se divide em quatro tempos:

(1) o julgamento de Elinor, anunciado no “Prólogo” e retomado no capítulo 21;
(2) os eventos próximos da morte de Laura Welman, entre os capítulos 1 e 5;
(3) os diálogos entre as personagens diretamente envolvidas com a falecida, nos capítulos 6 e 7;
(4) o ingresso de Hercule Poirot no enredo, quando passa a entrevistar as personagens suspeitas, entre os capítulos 8 e 20.

A exemplo de numerosas histórias legadas por Dame Christie, lá estão os retratos físicos e psicológicos, traçados ágil e objetivamente pela narradora; a aproximação de personalidades contrastantes, como uma das fontes de tensão no enredo; as questões de ordem pecuniária, capazes de estimular disputas pela fortuna deixada por Laura Welman; e o método analítico de Poirot que, ao final das entrevistas, percebe que todos os suspeitos haviam mentido para ele.

Por falar no caricato detetive, cumpre observar que sua atuação é mais discreta, se comparada aos outros contos e romances em que se fez presente. Em Cipreste Triste, ele só participa da trama a partir do oitavo capítulo, ou seja, quando um terço da narrativa já havia transcorrido. Uma possível explicação para isso poderia estar no modo como Agatha Christie organizou as partes do enredo, dispensando a presença mais assídua do detetive belga. A segunda razão pode estar relacionada com o fato de que a escritora passou a se incomodar com a onipresença do detetive – um “egoísta completo”, como ela o descreve em Uma Autobiografia, publicada em 1977 – um ano após a sua morte.

Assim como acontece em outros romances da autora, diversas passagens de Cipreste Triste lembram cenas de uma peça teatral (outro gênero literário que ela admirava e cultivou): a sucessão de diálogos enxutos, interrompidos com a saída repentina de um dos atores; a condução de breves entrevistas pelo detetive; o modo conciso como a narradora descreve os ambientes; a rápida transição entre os capítulos, que evoca certos recursos utilizados pelos cenógrafos no tablado etc.

Esses e outros artifícios asseguram que o leitor se veja envolvido na reconstituição dos crimes, cioso por desvendar os motivos torpes que teriam levado alguém a assassinar a frágil Sra. Laura Welman e a encantadora Mary Gerrard. Como ensinou Ernest Mandel (1923-1995), as tramas detetivescas resultam mais eficazes à proporção que alimentam, no leitor, o desejo de resolver enigmas, reestabelecer a ordem social e fazer a justiça possível. Eis o quadro maior em que se inscreve Cipreste Triste.

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