Um tiro no coração. De quem? Do professor ou do livro didático?
Um tiro no coração do professor. Um tiro na sua liberdade de escolher e possuir livros na escola e em casa. Livros usados, velhos, descartados. Um dia eles poderão ser úteis.
Silenciamento do conhecimento e das ideias contidas nos livros de matemática, física, biologia, história, literatura e tantos outros.
Não importa o suporte, ser ele papel ou digital, a escolha do material didático é direito do professor.
Obscurantismo e autoritarismo agora se chamam PowerPoint.
Mudou de nome? Por quê?
Porque o governador e seu secretário de Educação criaram um PowerPoint do tipo camisa de força. A intenção é retirar do professor a liberdade de pautar a sua própria aula. Em liberdade o professor poderia, de acordo com o seu planejamento e da secretaria, elaborar o seu próprio “PowerPoint”, utilizando a lousa. Sistema simples, barato e adequado às democracias com pouco dinheiro.
Teria sido de maior proveito para os estudantes se o secretário da Educação, Renato Feder, tivesse optado por dotar as escolas de melhores laboratórios. Material para atender salas de aulas com 35 ou 40 alunos. Os laboratórios são mais necessários do que celulares apreendidos pela Receita ou tablets. Laboratórios bem equipados agregam avanços incríveis no processo de aprendizagem. Mas raramente as compras partem das demandas dos professores e das escolas…
Faz parte da democracia o professor discutir com seus pares os livros que pretende utilizar, mudanças de método ou inserção de novas tecnologias. Em caso de mudança, de inclusão de novas tecnologias, é aconselhável preparar os professores para o novo cenário, conforme sugestão de instituições internacionais voltadas para a educação. A Unesco, por exemplo. Aliás, países como a Suécia, entre outros, têm comprovado a importância do uso apenas parcial de tecnologias em sala de aula.
A prática institucionalizada no Brasil para a escolha de material didático envolve um longo percurso. Dele participam professores, a rede de ensino e as universidades de todo o Brasil. Costume antigo, transparente, republicano em todas as etapas.
O primeiro passo é a abertura de um edital para a avaliação dos livros didáticos produzidos por diferentes editoras. Basta a editora inscrever o livro para ser avaliado. O segundo passo envolve a avaliação dos livros, realizada por centenas de professores, agrupados por áreas de conhecimento. O terceiro passo compreende a discussão do catálogo pelos professores das escolas públicas e secretarias de todo o Brasil. O objetivo é selecionar os livros que serão utilizados em cada escola. A compra do material é formalizada após as secretarias e os professores pactuarem sobre as escolhas dos livros. A aquisição é efetuada pelo Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD.
Tarcísio de Freitas, sem ouvir os envolvidos na questão, abriu mão de 10 milhões de livros didáticos (segundo a Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Didáticos – Abrelivros).
Abandonar o catálogo para a escolha de livros didáticos corresponde ao silenciamento de centenas de professores de todo o Brasil.
Um tiro na democracia.
O catálogo de livros didáticos
Como é feito o catálogo de livros didáticos?
Inúmeros professores, selecionados mediante edital público, analisam detalhadamente os livros didáticos de diversas editoras para formar um catálogo com várias opções.
Quantos são os professores que participam do processo?
Depende do número de obras inscritas pelas editoras.
Cada catálogo é uma porta aberta para os professores e as secretarias fazerem suas escolhas. Todas as editoras brasileiras, seguindo as regras de um edital público, podem ter seus livros avaliados.
Durante a seleção, pequenos equívocos contidos nas obras, datas erradas ou atividades mal elaboradas, podem ser corrigidos pelas editoras. Este esforço, em torno de pequenas correções, visa à manutenção da maior diversidade possível de livros nos catálogos. Muitas escolas da rede privada, com altos índices de aprovação nos vestibulares, utilizam os mesmos livros, aprovados pelo Ministério da Educação para as escolas públicas.
Desqualificar todos os livros do catálogo sugerindo conteúdo incompleto, falta de profundidade ou ainda serem eles superficiais, demonstra desconhecimento do material e do procedimento democrático para a sua seleção.
Existem exclusões de livros no catálogo?
Sim. As exclusões de livros inscritos pelas editoras para serem avaliados ocorrem em razão do não cumprimento das normas do edital e em razão de erros conceituais, atividades mal elaboradas, ausência de conteúdos exigidos pelo edital, entre outros itens contidos em uma planilha. No caso de desacordo da editora com o parecer emitido pelas comissões, é possível recorrer por meio de recurso. Uma comissão selecionada pelo MEC reavalia o material recusado.
A elaboração do catálogo de livros didáticos é construída com a participação de centenas de professores de todo o Brasil. A escolha dos professores avaliadores é feita por meio de edital público.
Qualquer professor pode se inscrever para realizar a avaliação dos livros, garantindo a diversidade de professores com origem em diversos estados brasileiros.
Embora a metodologia possa ter falhas, porque produzida e gerenciada por seres humanos, o processo de seleção expressa uma política pública marcada pelo respeito ao professor, à escola, à diversidade regional do País e à democracia.
A política de seleção e aquisição dos livros didáticos foi normatizada pelo Ministério da Educação. Sua transparência é garantida por meio de editais abertos ao público. A liberdade, em um estado democrático, é garantida pela capacidade das instituições públicas respeitarem, mediante procedimentos pactuados, os interesses da sociedade civil.
A decisão do governador de São Paulo é um tiro no coração da educação pública e da democracia.
O livro e o professor
É crime contra a democracia silenciar um professor, obrigá-lo a seguir um só livro, apelidado de PowerPoint. Os governos autoritários interferem na educação e na cultura para emudecer o pensamento crítico. Começam pelos mais jovens. Antigamente queimavam livros. Hoje deletam o professor e a biblioteca. No lugar colocam slides, um livro disfarçado de PowerPoint, de autoria, até este momento, mantida em segredo.
Os livros foram feitos para serem vistos por olhos humanos ou ouvidos humanos. O som pode ter origem tecnológica, mas a sua produção, direta ou indiretamente, tem origem em um humanoide.
O livro tem autoria. Alguém escreveu. Quem? Concordo? Discordo? A máquina pode “ler”, reproduzir sons, mas a escuta depende de um cérebro humano capaz de simbolizar.
O professor é o artesão que ensina a ver, ler e escutar. Ele ensina a discriminar convenções, algumas envolvidas com a veracidade, outras com a ficcionalidade. O professor ensina a reconhecer fatos e interpretações, distinguir fontes, explicar como funcionam os algoritmos separando o que é fato e o que é fake.
Não se trata de apresentação de coisas, mas de reflexão sobre as coisas. Platão já alertava sobre os perigos da caverna.
O livro, em todos os seus formatos, do papel ao digital, é um objeto humano-dependente. Pode servir a vários senhores. Reage bem a crítica. Fica em silêncio. As vezes parece ter morrido e, anos depois, desperta de um sono profundo. O livro é generoso. Suporta famílias extensas, passando de um para outro. As palavras podem ser lidas, escutadas, digeridas lentamente ou mesmo tratadas superficialmente no cumprimento de um dever escolar. Mas a palavra pode deixar semente, uma personagem, a Baleia, uma frase, “E agora, José”, ou um título, Cem anos de solidão.
O livro é uma porta aberta, um objeto mutante. Muda com o tempo, no instante da leitura. Metamorfoseado o livro em hipertexto, ele agrega som, imagem em movimento, permite filtragem e manipulação de dados. Na sua materialidade antiga, escrita sequencial, ou mesmo em sua imaterialidade recente, fragmentária, ele permanece humano-dependente. Alguém, um humanoide na origem, construiu aquele objeto, um livro, ou reutilizou um fragmento dele. Do fragmento nasceu um hipertexto onde as rotas de navegação são muitas. Nesta modalidade contemporânea ele segue as escolhas do navegador e dos interesses de quem navega. Mesmo os fragmentos de antigas histórias lineares, reinseridas em mídias digitais, fazem pensar. Afinal “de tudo fica um pouco”, como dizia Drummond.
No dia 10 de maio de 1933, integrantes do partido nazista queimaram em praça pública livros considerados “impuros” e “nocivos”. Foram destruídas obras de Albert Einstein, Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Thomas Mann e muitos outros.
Queimar livros ou impedir o seu uso por meio de justificativas demagógicas é uma estratégia de guerra, de considerar o outro, o livro, como inimigo.
16 pessoas foram mortas a tiros no Guarujá. Onde estão as imagens? O governo de São Paulo elimina livros.
É impressão ou o fascismo ressuscitou em terras de Piratininga?
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