Identidade e lugar de fala

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 30/08/2022 - Publicado há 2 anos

Quando eu tinha nove anos, uma de minhas amigas mais próximas sofreu um acidente sério. Para sua recuperação, teve que realizar uma traqueostomia. Já estava bem, mas ficou alguns meses com a estrutura em sua garganta, sem conseguir falar. Era criança, sentiu-se constrangida de voltar para a escola naquela situação, optou por realizar exercícios domiciliares. Perguntaram, então, se eu poderia ir todas as tardes na casa dela, logo depois da escola, passar os conteúdos que os professores tinham ensinado, o que tinha sido feito e quais lições estavam por se fazer. Foi a primeira vez que percebi que ensinar podia ser prazeroso e, além disso, uma das melhores formas de aprender.

Anos mais tarde, no início da graduação na Faculdade de Direito, um candidato de um concurso para professor bateu à porta do Centro Acadêmico XI de Agosto. Ele pedia dois comprovantes de palestras que tinha proferido a convite dos estudantes alguns anos antes. Achamos o registro, fizemos os comprovantes e perguntamos intrigados: “Mas… por que você quer isso?”. Ele respondeu que iria prestar um concurso para professor e que, para se inscrever, deveria escrever um memorial em que contasse toda sua trajetória acadêmica e apresentar todos os documentos comprobatórios. Esses dois certificados estavam entre eles. O professor passou no concurso e eu fui dormir com a certeza: algum dia escreverei um memorial para prestar um concurso e ser professora em uma universidade pública.

Sou professora. Sou professora de universidade pública no Brasil. Essa identidade me faz feliz e realizada. Além de professora, neste momento estou assessora da recém-criada Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP. Sou também mãe da Teodora, 9, e do Sebastião, 4.

Para conseguir ser mãe, professora e estar assessora, além de dividir na ponta do lápis as obrigações domésticas com meu marido, Tiago, contrato outra mulher, a Ozana – CLT, salário que é uma parte significativa do meu, todos os direitos, impostos e horários de um contrato de trabalho formal respeitados – para garantir os trabalhos reprodutivos de cuidado com meus filhos e de manutenção da casa. Além dela, eu e Tiago contamos com uma grande e generosa rede de apoio familiar. Avós, tias e tio ajudam muito nos cuidados com as crianças.

Sou mulher, sou branca, cresci em uma família de classe média alta. (Se eu fosse fazer uma investigação rigorosa, identificar as categorias usadas pelo IBGE, levantar e corrigir com a inflação e mudanças de moeda as estimativas de renda de meus pais, talvez eu chegasse à conclusão que o média não cabe aqui. Mas… como não vou fazer este levantamento todo, deixemos assim que é a autodeclaração com que cresci e que também me deixa mais confortável.) Com exceção de três anos não consecutivos cursados em escolas públicas, durante os anos de educação básica frequentei majoritariamente escolas privadas, incluindo o ensino médio. Graduação, mestrado e doutorado fiz na USP, universidade pública.

Minha mãe e meu pai têm diploma de ensino superior. Meus pais foram os primeiros universitários de suas respectivas famílias (aliás, como tantos estudantes atuais da USP, aprendi recentemente com minhas colegas de Pró-Reitoria). Eu, no entanto, já faço parte de uma segunda geração universitária.

Neste 2022, fui convidada a compor o conjunto de articulistas fixos do Jornal da USP pela equipe da Superintendência de Comunicação Social, Marcia Blasques, Luís Serrano e Eugênio Bucci, trio a quem agradeço. Foi uma honra ter recebido o convite, é um prazer estar por aqui. Este texto tem como objetivo apresentar de onde escreverei os artigos daqui para frente. Sei que não é uma apresentação lá muito convencional no mundo acadêmico, mas me coloca no mundo e na vida universitária com meu gênero, minha raça, minha classe, minha trajetória educacional, as contingências que minha vida privada e meu ser mãe impõem à minha vida pública profissional. É deste lugar que falo e que escrevo.

PS1. Quanto à minha trajetória acadêmica, meus temas de pesquisa – que figurarão nas próximas colunas – há em algum lugar por aí uma minibiografia que conta essa parte. Será fácil achar. Voltamos a nos encontrar em breve por aqui.


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