Sobrevivemos

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 06/01/2023 - Publicado há 1 ano

A eleição de Lula contra Bolsonaro colocou frente a frente dois projetos opostos de poder. Lula defendia a política e saiu vitorioso. Era o representante, junto com uma frente ampla de partidos compromissados com o legado da Nova República, da ideia de uma autoridade voltada para a construção de um projeto coletivo que contemplasse a todos, iniciada em 1985.

Bolsonaro defendia a continuidade e o aprofundamento de uma guerra que começou com sua eleição em 2018. Estava voltava à desconstrução das estruturas normativas criadas com a Constituição de 1988, como o ex-presidente deixou claro em toda sua carreira política. Em vez de criar um pacto político para a implantação de suas políticas públicas, sua autoridade era forjada no discurso do conflito, buscando fortalecer e arregimentar aliados na luta contra os inimigos que impediam o desenvolvimento do país. Nesse país conflagrado, a Nova República seria substituída pela República das Milícias.

Não foi por acaso que um dos eixos das políticas bolsonaristas tenha sido o armamento da população e o incentivo à multiplicação dos clubes de tiros pelo Brasil. Nesses clubes se concentravam atiradores que, com o tempo, tornaram-se defensores fanáticos do líder. Eles finalmente tinham uma causa pela qual lutar: a construção de uma sociedade cujo poder seria delegado aos mais fortes, mais dispostos a ir para o confronto e arriscar suas próprias vidas em uma guerra que oferecesse sentido a suas trajetórias vazias. Estávamos caminhando a passos largos para a beira do abismo.

A omissão na fiscalização da compra de armas, o desmonte dos órgãos ambientais, o incentivo à invasão de terras indígenas, a tentativa de fragilizar o controle das polícias e o incentivo à violência paramilitar, a disseminação da mentira como tática discursiva nas redes sociais para desmoralizar adversários, eram algumas das ações voltadas para minar as estruturas do Estado de Direito em benefício do fortalecimento de seus aliados.

Caso o projeto fosse bem sucedido, o governo bolsonarista se tornaria a mais poderosa facção nacional, que em vez de representar os interesses dos brasileiros e garantir os direitos individuais, atuaria em benefício dos que estivessem ao seu lado, a metade mais armada de um país cindido, seguindo um caminho semelhante ao que vem sendo trilhado no Rio de Janeiro, em que tiranos acumulam capital econômico e político para exercer o poder nos territórios pela força bruta, na defesa de seus negócios e lucros, em detrimento dos moradores.

O Brasil brincou com fogo, sem saber dos riscos que corria. Sobrevivemos, por pouco, graças a uma maioria apertada, que escolheu não embarcar de vez nesse conflito fratricida. Saíram derrotados os senhores da guerra, a elite bolsonarista, representantes das Forças Armadas e das polícias, iludidos pelas teorias conspiratórias, deslumbrados com o poder de suas armas e de sua masculinidade – mesmo que a custa do Viagra patrocinado com verba pública. Perderam espaço os empreendedores que dependem da destruição da floresta e da grilagem de terra para enriquecer, entre outras figuras abjetas, que vinham ampliando seus empreendimentos criminosos beneficiados, muitas vezes, com o dinheiro lavado do tráfico de drogas. O desmonte do Estado e sua desregulamentação aumentava a força de um mercado predatório, cada vez mais dependente das conexões com o capital criminal.

O projeto bélico da extrema direita, contudo, seduziu uma massa de 58 milhões de brasileiros, metade do país, eleitores desiludidos com a política e com o legado da Nova República, considerada ineficaz, crentes no papel da violência para produzir uma nova ordem, que torna a vida previsível para as pessoas que pensam como eles e que esperavam impor seus valores aos demais. Esse sentimento pode continuar fervilhando nos corações de parte da massa, à espera de um candidato que volte a atiçar esses desejos e consiga se vender como seu representante. Caso a justiça não funcione e não investigue o papel do ex-presidente nesses atos, o próprio Bolsonaro pode exercer esse papel em 2026.

A frente ampla que assume o poder, liderada pelo presidente Lula, e os políticos brasileiros em geral, têm o desafio de desarmar esses espíritos. Para fazer metade da população voltar a enxergar a democracia como uma arena para promover diálogos, onde soluções sejam discutidas e executadas de acordo com sua racionalidade e propósito, para tornar a sociedade melhor e mais justa. O fortalecimento de uma direita compromissada com os valores democráticos e republicanos tem um papel importante a cumprir nesse cenário.

Lula deu os primeiros passos para reconstruir o desmonte das instituições iniciado por Bolsonaro e sua trupe. Começou com o simbolismo da linda festa de posse e continuou na formação do governo. A volta de Marina Silva ao Meio Ambiente, que durante o primeiro governo Lula imprimiu uma redução recorde de queimadas e desmatamentos na Amazônia, foi um alento. A chegada de Silvio Almeida no Ministério dos Direitos Humanos, com seu discurso que já entrou para a história como um dos mais belos e fortes da história política brasileira, nos encheu de esperança. A presença de Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial e o compromisso assumido pelo ministro Flavio Dino em se empenhar na investigação sobre o(s) mandante(s) do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes também foram pontos altos.

A busca pela retomada da racionalidade no debate público também começou a ser testada. A escolha de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda foi uma opção interessante. Haddad já deu mostra de seu compromisso com a responsabilidade fiscal na administração da prefeitura em São Paulo, em que ele se destacou pelo zelo com as contas públicas. Ao mesmo tempo, tem legitimidade política e conhecimento de causa para não se sujeitar às chantagens histéricas do mercado, que deve ser uma instituição relevante, mas que não pode impor sua lógica e seus valores no grito.
A escolha da ministra Daniela Carneiro para o Turismo também trouxe elementos da realidade política nacional. Deputada federal mais bem votada do Rio, casada com o prefeito de Belford Roxo, Wagner Carneiro, o Waguinho, foram os únicos políticos da Baixada Fluminense a apoiar a candidatura de Lula na eleição presidencial. O clã, contudo, foi acusado em reportagens de ter apoio de informal de policiais da cidade durante a eleição. Eles também têm relação próxima com um antigo chefe da milícia na cidade que ainda cumpre pena pelos crimes que cometeu.

Uma questão naturalmente se impõe: a aproximação entre as partes pode tornar os coronéis-urbanos da Baixada Fluminense mais republicanos? Ou a influência pode ser inversa, com os republicanos normalizando o poder informal e arbitrário dos milicianos e da violência? Essas e outras questões estão em aberto e os desdobramentos serão decisivos para o futuro político do Brasil.

Sobrevivemos por pouco. Mas o corpo ainda está fragilizado, suscetível à volta da chaga que quase nos fez sucumbir e pode voltar ainda mais forte.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


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