Terceirização irrestrita no Brasil traz desigualdades e impactos desconsiderados em decisão do STF

Ao analisar decisão do Supremo Tribunal Federal de 2017, pesquisadoras encontram ausência de pontos de vista plurais e a desconexão entre a realidade do Judiciário e da classe que vive do trabalho

 10/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 11/08/2023 as 18:01
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O grupo de trabalhadores terceirizados é especialmente vulnerável no mercado de trabalho – Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

 

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A pesquisadora Regina Stela Corrêa Vieira, da Universidade Federal de São Paulo, é a convidada da professora Fabiana Severi neste episódio do Mulheres e Justiça. A convidada traz os resultados da reescrita de decisão judicial, embasada na perspectiva feminista, de um recurso especial julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017,  que tratou da terceirização. Uma decisão, segundo a pesquisadora, que mudou a jurisprudência brasileira, pois o STF considerou que pode haver todo tipo de contratação de trabalhador por intermédio de outra empresa. Antes dessa decisão somente poderiam ser terceirizadas as atividades-meio das empresas, podiam ser contratados terceiros para setores que não estavam no coração do negócio. “Um divisor de águas no Direito do Trabalho, pessoas contratadas diretamente por uma empresa passaram a executar as mesmas funções que as pessoas terceirizadas.”

A pesquisadora lembra que o grupo de trabalhadores terceirizados  é especialmente vulnerável no mercado de trabalho, com salários menores, menos garantias sindicais e maior rotatividade. “Diante de tudo isso, nosso grupo entendeu que seria relevante investigar se a perspectiva feminista poderia mudar a interpretação dos ministros sobre o tema e, portanto, mudar o resultado da decisão.” 

Regina diz que a terceirização é um tema que, aparentemente, não possui recorte de gênero específico, afinal esse grupo é formado tanto por trabalhadoras como por trabalhadores no Brasil e nas mais diversas funções e setores, portanto, “trazer uma abordagem feminista seria incorporar um olhar que não estava presente nos debates sobre o tema”. 

Em função do volume de informações e diversidade de argumentos nos votos dos ministros, o grupo optou por apresentar um voto complementar, que colocasse as lentes feministas no centro da argumentação. “Assumimos uma postura de questionar, a partir de um grupo aparentemente homogêneo de trabalhadores afetados pela decisão, onde estavam as mulheres.” Para a pesquisadora, ficou evidente que alguns dos votos consideravam apenas grupos de trabalhadores terceirizados mais privilegiados, especializados, como os trabalhadores da tecnologia da informação, por exemplo. “Isso fez com que parte dos ministros desconsiderasse o fato de que as mulheres se concentram nas atividades terceirizadas mais precarizadas, como a limpeza e o telemarketing.”

As pesquisadoras também analisaram a questão do cuidado, ou seja, como os encargos familiares e a divisão sexual do trabalho afetam as mulheres e a sua colocação no mercado de trabalho, gerando desvantagens. E, por fim, o grupo  fez uma revisão do sistema de referências e citações dos votos e escolheram para o voto complementar utilizar um referencial teórico preferencialmente feminino, com incorporação de autoras competentes nos mais diversos campos do conhecimento, e “não reproduzir o sexismo acadêmico, jurídico e judiciário”. 

Impactos em diferentes grupos

Regina Stela Corrêa Vieira – Foto: Arquivo Pessoal

Como resultado, Regina conta que foi possível questionar os pressupostos constitucionais e econômicos utilizados pelos ministros do STF nessa decisão e encontraram informações sobre os impactos da terceirização em diferentes grupos sociais. Nesse sentido, diz Regina, não só o gênero, mas a raça, a origem, a sexualidade, a classe e a escolaridade mudam profundamente o sentido da terceirização, geram impactos e deixam principalmente mulheres negras e pobres em condições de maior vulnerabilidade e menos direitos. “Essa realidade não foi considerada quando a terceirização irrestrita foi legalizada no Brasil.”

A pesquisadora afirma que a reescrita feminista revelou que a ausência de pontos de vista plurais e a desconexão entre a realidade do Judiciário e da classe que vive do trabalho, além da ausência de sensibilidade quanto à precarização, geram graves consequências para a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores no Brasil. “A prevalência de interpretações judiciais que privilegiam interesses econômicos gera desequilíbrio entre os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, deixando de lado o princípio protetor e ferindo as bases do Direito do Trabalho. Tudo isso só reforça a responsabilidade do Poder Judiciário, que tem o potencial de alterar as condições coletivas e individuais da vida de trabalhadores e trabalhadoras e precisa fazer isso com urgência.”

A reescrita que elaborou voto complementar na decisão do STF sobre a contratação de força de trabalho terceirizada para atividades-fim, embasada na perspectiva feminista, também teve a participação da professora Bruna Angotti e das pesquisadoras  Camila Lima, Iara Beatriz de Lima Medeiros, Isadora de Lima Caldas e Maria Rebeca Rego Campos, todos do Núcleo Capibariba, Coletivo de Pesquisa em Direitos Sociais, Trabalho e Subalternidades, sediado na Universidade Federal de Pernambuco.

A série Mulheres e Justiça faz parte do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas, uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País, que se presta a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira -
Apoio:acadêmicas Juliana Cristina Barbosa Silveira e Sarah Beatriz Mota dos Santos-FDRP
Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br


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