Inteligência, uma propriedade biológica – Cognição no mundo vegetal

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 18/07/2023 - Publicado há 10 meses

No artigo anterior discuti algumas características essenciais da inteligência abordando a inteligência microbiana nos vírus e na bactéria Escherichia coli. Neste, vou examinar a inteligência das plantas. Repito aqui as características que considerei essenciais para inteligência na Parte 1:

1) capacidade de armazenar informação (ou memória);
2) capacidade de processar informação;
3) capacidade de “se perceber” como um indivíduo e
4) capacidade de decidir.

A inteligência das plantas é uma ideia antiga, mas que tem sido obscurecida por um fenômeno chamado de Cegueira Botânica. Este fenômeno é o da invisibilidade das plantas para os seres humanos. Nada a ver com os olhos, mas sim com como usamos o nosso cérebro para perceber o mundo que nos rodeia. Um dos resultados desse efeito é o desafio que se tem ao tentar encontrar algo mais amplo sobre inteligência; algo que vá além da inteligência dos humanos e alguns animais de que mais gostamos. Se formos persistentes encontraremos muita coisa, só que em artigos científicos e livros escritos por botânicos. Por outro lado, autores como o jornalista Michael Pollan e mais recentemente o botânico Stephano Mancuso têm feito um bom papel na divulgação de que as plantas possuem cognição e inteligência.

Aqui no Brasil também já temos discutido isto há pelo menos duas décadas. A visão das plantas como sistemas adaptativos complexos (o que implica que podem ser seres inteligentes) já foi tema de artigo em 2004, de minha autoria, juntamente com Gustavo Maia Souza. Desde então, nós dois temos explorado de formas distintas este tema que é tão complexo e que permite múltiplas visões.

Provavelmente, uma das primeiras menções de inteligência em plantas vem de Charles Darwin que, em sua autobiografia, se declara apaixonado pelos experimentos que fez em sua vida com fisiologia vegetal. Trabalhando com plântulas (plantinhas jovens que se desenvolvem logo após a germinação da semente), Darwin propôs a existência de inteligência em plantas em um livro de 1898, com a participação de seu filho Francis. Eles afirmam que meristemas – tecidos vegetais presentes nos ápices do caule e da raiz, onde são definidas quais células farão parte de qual tecido no futuro – seriam provavelmente “como um cérebro vegetal similar ao cérebro de animais inferiores”.

Para entender o que significa a inteligência nas plantas, vou examinar como se dá a cognição e consciência delas usando alguns poucos exemplos. Como estamos mais acostumados com a inteligência nos animais, talvez fique mais fácil para o leitor entender a dos vegetais através de análises comparadas entre os processos cognitivos das plantas e dos animais. Mas o leitor deve ficar ciente de que o fim é o mesmo – adaptação -, mas por processos biológicos diferentes.

Antes de mergulhar na inteligência e consciência dos vegetais, há alguns aspectos importantes para relembrar sobre como as plantas funcionam.

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Inteligência, uma propriedade biológica – Cognição no mundo microscópico

Primeiro: a maioria das plantas constitui colônias de folhas, órgãos que desempenham o processo primordial que sustenta a vida na terra, a fotossíntese.

Segundo: a consequência deste processo é que açúcares oriundos da fotossíntese de cada folha são bombeados na forma de sacarose (o açúcar comum) por todo o corpo da planta, alimentando cada uma de suas células.

Terceiro: a sacarose funciona como um sinalizador de que a fotossíntese está ocorrendo e desempenha papel crucial na comunicação através de mecanismos chamados de sensores de açúcares.

Quarto: ao mesmo tempo, as raízes, que estão fincadas na terra, absorvem água e nutrientes. Os nutrientes vão ser absorvidos pelas células e a maior parte da água passa diretamente pelo corpo da planta e sai pelos estômatos (“boquinhas” microscópicas na parte de baixo das folhas que se abrem durante o dia) levando ao que chamamos de evapotranspiração.

Quinto: As forças do bombeamento de açúcares por um lado e da sucção de água e nutrientes por outro, são o que mantem o sistema circulatório funcionando e as células vegetais vivas. O balanço entre essas duas forças é o equivalente vegetal ao sistema cardíaco dos animais. Só que, nas plantas, este “coração” bate uma vez por dia, já que há um único pulso de sacarose vinda da fotossíntese a cada dia da vida de uma planta.

A necessidade de cognição surge do fato de que, para que haja equilíbrio, um indivíduo vegetal não pode prescindir de múltiplos sistemas de monitoramento que fiquem permanentemente atentos ao ambiente em seu entorno. Isto porque qualquer interferência no equilíbrio circulatório pode pôr em perigo folhas, ramos, raízes e o sistema reprodutivo.

As propriedades cognitivas das plantas podem ser comparadas a uma rede complexa que processa informações e toma decisões. Uma analogia pode ser feita com a integração na internet. Nesta as informações que colocamos interagem através de algoritmos desenvolvidos pelo homem. Atualmente, com a inteligência artificial, as informações são processadas no sentido de tomar decisões.

Por exemplo, um sistema pode nos indicar livros de uma classe similar a algum livro que estejamos pesquisando num site. Da mesma forma, as plantas colhem informações através de todo o seu corpo e as integram, mesmo sem ter um órgão central para isto. Elas usam a inteligência do tipo enxame.

Os animais possuem um sistema centralizado (o cérebro) que integra informações, ao passo que neurônios e cérebros não estão presentes nas plantas. O problema é que o sistema de centralização animal demanda grande quantidade de energia para funcionar. A explicação para o não aparecimento de um sistema centralizado de custo metabólico extremamente alto nas plantas (como o cérebro) é simples. As plantas são o primeiro estágio das cadeias alimentares e não há como acumular energia suficiente, como ocorre nos animais que se alimentam constantemente das plantas e/ou de outros animais. A alimentação das plantas depende inteiramente do sol e está presa ao movimento do planeta. A consequência é que nas células animais, a taxa metabólica pode ser muito mais alta e o consumo de energia também. Já nas plantas, é virtualmente impossível ter uma taxa metabólica tão alta, a não ser em casos especiais em que as plantas armazenam grande quantidade de reservas e gastam tudo rapidamente para acelerar o metabolismo em alguma condição especial.

O resultado disso tudo é que, mesmo depois de bilhões de anos, não houve como a evolução das plantas produzir sistemas musculares ou sistemas nervosos nos vegetais, uma vez que são sistemas que demandam grande quantidade de energia para funcionar. Nas plantas tudo é mais lento. Não há um coração musculoso bombeando líquidos cheios de nutrientes pelo corpo. Esses nutrientes são sim espalhados e entregues às células vegetais para mantê-las vivas, mas numa velocidade muitas vezes menor que nas células animais. Enquanto a velocidade da circulação do sangue humano é, em média, de 2 km/h, o fluxo da seiva vegetal é da ordem de 2 a 20 m/h. Ou seja, as plantas são de 10 a 100 vezes mais lentas.

Sabemos que as cores de luz usadas pelo aparelho fotossintético são o azul e o vermelho. É por isso que vemos as plantas em tons de verde, cor refletida por não ser utilizada. Mas há algo além. Certos tons de luz são usados para a percepção do que está acontecendo no ambiente e funcionam para ajudar a planta a decidir se vai crescer e para que lado devem ir os novos ramos. Assim, este sistema perceptivo de luz do ambiente luminoso pelas plantas, nesse caso diferentes tons de vermelho, é análogo ao sentido da visão nos animais. Já sabemos que um indivíduo vegetal percebe a presença de outro ao seu lado através da reflexão de certos tons de vermelho. Quando olhamos uma floresta como a tropical, a aparência é de uma bagunça. Mas não se engane: as plantas estão usando as suas inteligências para encontrar o espaço adequado para obter a quantidade de luz e nutrientes que precisam para se manter vivas.

A percepção dos animais pela visão pode levar à ação em segundos. A situação do ambiente circundante é rapidamente avaliada (ou seja, a informação é processada) e é tomada uma decisão de ficar, sair, atacar ou defender. Nas plantas, a decisão entre as duas primeiras opções é impossível, o que é diferente para decidir se vai atacar ou se defender. Há alguma pré-programação para defesa, como possuir espinhos ou produzir substâncias venenosas. Mas as plantas têm mecanismos de resposta que são ativados no momento de um ataque ou uma invasão. No caso do ataque de microrganismos ou insetos, as plantas podem lançar mão de um análogo do sistema imunológico, produzindo toxinas local e globalmente para evitar o ataque. Alertas sistêmicos, como a produção de substâncias sinalizadoras, avisam toda a planta que um ataque está ocorrendo. Já se detectou algo extraordinário como ondas hidrodinâmicas nos vasos do xilema (cheios de água) que funcionam para avisar toda a planta que pode estar havendo o ataque de insetos em algum lugar do corpo de um indivíduo. Mais do que uma resposta individual, um indivíduo atacado pode também avisar os outros ao redor, deixando todo mundo alerta de um ataque iminente.

No caso das copas das árvores, já foi sugerido pelo pesquisador de Edimburgo, Anthony Trewawas, que um sistema de enxame provavelmente é o que está por trás da inteligência das plantas. A comunicação numa copa de árvore poderia se dar através do sistema vascular, por meio de produção de compostos voláteis produzidos pelas folhas e lançados ao ar através dos estômatos, ou mesmo através de reflexão da luz.

Assumindo que há inteligência nos vegetais, podemos pensar também se há ou não consciência. No artigo anterior usei os conceitos propostos por António Damásio de consciência central (apenas com a noção de aqui-e-agora) e consciência ampliada (com a noção de passado-presente-futuro e baseada em memória). No caso das plantas, de cara poderíamos concluir que elas apresentam uma consciência central. Ou seja, elas se percebem como indivíduos e concebem um aqui-e-agora. Mas há evidências de memória nas plantas, tais como as que ocorrem na popular dormideira (Mimosa pudica), que se lembra de movimentos anteriores e muda seu comportamento; ou a chamada “memória do estresse” em que plantas submetidas a um determinado estresse (diminuição na oferta d’água por exemplo) se lembram do que ocorreu no passado e respondem mais rapidamente na próxima vez. Note que esses dois fenômenos denotam o fato de que uma decisão de um vegetal pode ser modificada com base em eventos passados. Isto é compatível com a definição de Damásio da consciência ampliada.

Há, portanto, evidências tanto de inteligência como de consciência em plantas. Como ocorre nos animais, esses níveis variam. Há espécies que se adaptam muito bem a ambientes distintos. As pequenas lentilhas d’água, por exemplo, ocorrem praticamente em todo o planeta e se adaptam a múltiplas condições ambientais. Já as grandes árvores dos jatobás se adaptam à maioria dos biomas neotropicais. Espécies como estas são chamadas de “supertramp species”, definição ecológica que indica as espécies que se adaptam bem a múltiplos ambientes. Portanto, usando a definição de Stenhouse (dada no artigo da Parte 1) poderíamos dizer que as supertramp podem ser espécies altamente inteligentes. Esta variabilidade nos faz pensar se pode haver algum equivalente – em termos de inteligência e adaptação à biosfera terrestre – ao Homo sapiens entre as plantas. Se aceitarmos que plantas são inteligentes e conscientes, e se pensarmos “fora da caixa” a respeito de espécies cultivadas por nós como milho, trigo, arroz e soja – as quatro mais plantadas no mundo – podemos indagar se a domesticação dessas quatro espécies é obra da inteligência humana ou do vegetal.

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