Mapa on-line refaz os caminhos da Expedição Langsdorff

Projeto dá acesso a imagens e documentos produzidos pela missão científica que percorreu o Brasil no século 19

 10/11/2020 - Publicado há 3 anos
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Vista de Cubatão, no litoral paulista, por Hercule Florence – Foto: Reprodução/ IHF

“A três léguas de São Paulo vi o monte Jaraguá, palavra indígena que significa ‘rei das montanhas’, por ser o ponto mais elevado da região. Ao pé dessa montanha foi descoberta a primeira mina de ouro do Brasil, por volta do ano 1520, fato que despertou o interesse de Portugal pelo Brasil, até esse momento pouco apreciado.” Foi assim que o artista francês Hercule Florence (1804-1879) descreveu em 1825 o atual Pico do Jaraguá, em São Paulo, no livro L’Ami des Arts Livré à Lui-Même, um diário que escreveu sobre sua participação como desenhista na Expedição Langsdorff. O livro integra um mapa interativo que refaz os caminhos dessa missão científica que percorreu o interior do Brasil, do Rio de Janeiro até o Amazonas, entre 1825 e 1828, fazendo um monumental levantamento de dados geográficos e etnográficos do País.

O mapa on-line é resultado da parceria entre a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e o Instituto Hercule Florence (IHF). “A parceria permitiu que a viagem enriquecesse o Atlas dos Viajantes no Brasil, projeto sediado na BBM, e ao mesmo tempo divulgasse o importante relato de Florence e o trabalho realizado pelo IHF”, afirma João Marcos Cardoso, curador do acervo de viajantes da BBM. O trajeto compreende a segunda etapa da missão e foi elaborado a partir dos registros presentes no livro de Hercule Florence, na seção Voyage Fluvial du Tiété à l’Amazonie. Além de trechos do diário, associados às datas e aos locais, há dados sobre o tipo de transporte utilizado para o deslocamento, além de desenhos feitos pelo artista.

O mapa on-line é resultado da parceria entre a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e o Instituto Hercule Florence (IHF) – Foto: Reprodução/ IHF

O Mapa da Expedição Langsdorff, segundo o relato de Hercule Florence, é um projeto do historiador João Carlos Cândido Santos, que faz mestrado em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e foi pensado a partir de suas experiências com mapas. “Os primeiros exercícios que eu fiz de ‘construção de mapas’ foi para dar visualidade às palavras que se referiam aos lugares físicos que apareciam nos documentos e para entender a relação que as pessoas do passado tinham com o relevo, com os cursos aquáticos, com a paisagem, com o espaço onde estavam imersos e a partir de onde produziram os documentos que chegaram até hoje”, comenta Santos.

Santos afirma que esta é a segunda iniciativa de reconstrução do percurso da missão após a confecção dos mapas oficiais da Expedição Langsdorff feitos pelo astrônomo Néster Rubtsov – integrante da expedição -, que se encontram na Academia de Ciências de São Petersburgo, na Rússia, um acervo de difícil acesso. “Em 2010, graças à exposição do Banco do Brasil sobre a expedição, pudemos ver um pouco dessas obras, que se encontram reproduzidas no catálogo, porém, sem alta resolução, dificultando qualquer tipo de pesquisa”, lamenta. O historiador ainda lembra que, em 1971, Arnaldo Machado Florence esboçou alguns mapas a partir do relato de Hercule Florence, “provavelmente para serem vinculados na publicação de Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará (1825-1829), de 1977”.

O projeto

Entre 2016 e 2017, ainda durante sua graduação no curso de História da USP, Santos participou do projeto O Trânsito de Homens e Artefatos entre São Paulo e as Minas de Cuiabá no século XVIII, sediado no Museu Paulista da USP, no qual identificava os locais citados na documentação em programas de geoprocessamento. Em 2018, já como estagiário do museu, começou a pesquisar os locais citados num caderno pertencente ao artista viajante Aimé-Adrien Taunay (1803-1828) para a criação de um mapa que seria exposto no site do projeto O Caderno de Aimé-Adrien Taunay: Histórias, Descobertas e Percursos, lançado em 2019 e realizado em parceria com uma série de instituições, em especial o Instituto Hercule Florence. E foi a convite do presidente do IHF, Antonio Florence, que começou a aplicar o mesmo conceito na seção Voyage Fluvial du Tiété à l’Amazonie, do conjunto documental L’Ami des Arts Livré à Lui-Même, de Hercule Florence.

O mapa está baseado nas observações de Hercule Florence expostas no livro L’Ami des Arts Livré à Lui-Même – Foto: Gabriel Quintão/ IHF

“Para chegar ao ‘percurso da Expedição Langsdorff’, eu fiz a leitura do documento nas versões transcrita e traduzida, e a partir dela montei um banco de dados com os locais ou topônimos citados por Hercule Florence. Após essa tarefa, tentei localizar em outros documentos, como relatos e cartas cartográficas (anteriores, contemporâneos e posteriores), os lugares que eu havia levantado e já observar nas imagens do programa de geoprocessamento, bem como em base de dados cartográficas, onde estariam tais pontos”, explica Santos. Mas, como lembra, nessa etapa apareceram algumas questões. “A primeira diz respeito aos lugares, descritos no relato e corroborados em outros documentos, que não existiam mais, em particular acidentes hidrológicos, como corredeiras, cachoeiras, baixios, além de fazendas e aldeias indígenas. Por vezes foi possível encontrar vestígios no relevo ou nos nomes regionais, a partir dos quais fiz aproximações para plotar os pontos e reconstruir o percurso”, relata.

A segunda questão foi a existência dos locais, porém com nomes diferentes dos mencionados nos documentos de época: “Nesse caso tive que comparar mapas antigos (por vezes georreferenciá-los) com imagens de satélite ou com cartas atuais para chegar a uma localização aproximada”. Há ainda uma terceira questão que, segundo Santos, se refere à existência ou não de lugares, mas que não aparecem, ou se têm alguma aparição é lacunar, nos documentos e mapas do passado, bem como nos do presente. “Aqui tive que recorrer, muitas vezes, a dois recursos: refazer o trajeto contabilizando medidas que apareciam nos relatos (alguns desses relatos sinalizavam os pontos e as distâncias entre um lugar e outro, mas com medidas que hoje não existem mais) e entrar em contato com instituições ou habitantes locais para questionar sobre a resistência, existência ou permanência do ponto indicado na documentação”, explica.

Como grande parte do caminho percorrido por Hercule Florence e seus colegas de viagem da Expedição Langsdorff foi feita com base na rota das monções – alvo de sua pesquisa inicial, em 2016, um trajeto fluvial por onde se deslocavam pessoas e mercadorias entre Porto Feliz, na então província de São Paulo, e Cuiabá, na então província de Matto-Grosso –, Santos já possuía familiaridade com a documentação e com os topônimos. Porém, devido à pandemia de covid-19, teve certa dificuldade, “uma vez que cada cidade e Estado contatado se valeu de um tipo de protocolo para atividades de trabalho, em particular os órgãos públicos”. Ao todo, diz, foram seis meses de pesquisa e de construção do percurso.

Desenho da habitação dos apiacás, em Juruena, no Mato Grosso – Foto: Reprodução/ IHF

Os relatos

Santos ainda destaca a dinâmica que ocorre com os topônimos dos rios e seus acidentes. “Ao longo da segunda metade do século 20, muitas cachoeiras e quedas d’água de grandes rios, como o Tietê, Paraná e Pardo (de Mato Grosso do Sul), foram submersas por represas de usinas hidrelétricas, o que também modificou drasticamente o caminho que esses rios faziam pela paisagem – na maior parte das vezes eles ficaram mais retilíneos, perdendo suas curvas. Com o desaparecimento desses acidentes hidrográficos foi se extinguindo com eles uma série de outros componentes biológicos e culturais”, diz e continua: “No entanto, a memória dos rios e das práticas que os envolviam permanece com as pessoas que chegaram a vivenciar esses espaços antes das represas e usinas hidrelétricas. Muitas dessas vivências foram passadas de geração em geração, podendo remeter inclusive a períodos recuados no tempo”.

O historiador cita um relato pessoal: “Meu avô paterno, Odilon dos Santos, nascido no interior de São Paulo, na divisa com o Paraná e Mato Grosso do Sul, tinha o costume de pescar nos grandes rios dessa região, e para isso tinha que se deslocar por via fluvial, atravessar cachoeiras e aportar nos pousos para pernoitar. Ele contava sobre essas aventuras para mim e citava os nomes dos lugares, bem como onde eles ficavam. Vários deles tinham nomes e referências idênticas ou muito assemelhadas com os apontados pelos viajantes e sertanistas nos seus relatos, e que mais tarde eu viria a compreender que eram os mesmos locais que tiveram fundamental importância até muito pouco tempo”. Além disso, Santos conta que teve a oportunidade de visitar alguns desses locais remanescentes. “A experiência de estar em um ambiente como o que foi descrito na documentação me auxiliou muito na elaboração do mapa.”

O mapa interativo da Expedição Langsdorff está disponível no Atlas dos Viajantes no Brasil da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e no site do Instituto Hercule Florence (IHF).


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