Mentalidade ou imunidade de rebanho

Ato falho de Donald Trump é um convite sugestivo para se discutir a história da mentalidade conservadora

 16/10/2020 - Publicado há 4 anos
Presidente Donald Trump em entrevista à ABCNews – Foto: Reprodução/ ABC

Por Janice Theodoro da Silva

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se atrapalhou ao falar para eleitores na ABCNews, em 15 de setembro de 2020: ele disse “mentalidade de rebanho” e não “imunidade de rebanho”.

O ato falho sugere reflexão com a troca das palavras.

Mentalidade é uma representação coletiva em que o sujeito incorpora determinadas formas de viver, sentir e existir. As mentalidades, de ditadores ou de democratas, carregam diferenças históricas tanto do ponto de vista pessoal como social, não se reduzindo a uma determinada inserção social do sujeito.

A violência ou tranquilidade cotidiana em uma comunidade, as diversas formas de exposição à publicidade, a educação, as pequenas experiências cotidianas com os amigos e familiares, de compartilhamento ou competição, a construção dos desejos, de sonhos aliados à dúvida sistemática compõem uma “salada” formadora de mentalidades. Diversos fatores, grande parte deles invisível e imaterial, constroem formas de pensamento dogmáticas, estereotipadas, maleáveis ou críticas.

A professora da USP Janice Theodoro da Silva – Foto: Matheus Araújo/IEA

Imunidade é uma palavra sugestiva da presença de um organismo vivo e ativo na defesa de substâncias estranhas, de microrganismos. A imunidade é um processo complexo tanto do ponto de vista individual como coletivo. Requer memória da célula, aprendizado, adaptação, ativação, prevenção, uma série de apropriações e conhecimentos cujo resultado responde à capacidade do organismo de se defender. A multiplicidade de variáveis, ao se analisar problemas ligados à imunidade ou memória celular, torna a pesquisa indispensável.

Trocar a palavra imunidade por mentalidade, como aconteceu com Trump, em meio a uma pandemia é uma confusão carregada de sentido. Trata-se de ato falho, como nos ensinou Freud e, posteriormente, Adorno, este último preocupado em relacionar o indivíduo e o seu ato falho com a sociedade em que vive.

A sociedade contemporânea é marcada por profunda desigualdade social. Atualmente ela expandiu e organizou digitalmente seus setores conservadores, críticos ferrenhos às políticas de bem-estar social. A mentalidade conservadora e autoritária caracteriza-se, entre outras disposições, pelo enaltecimento do individualismo, pela precarização do emprego e pela valorização do empreendedorismo. Palavra adocicada para justificar a desmobilização de políticas sociais de Estado em relação ao emprego, à aposentadoria e a outras formas de proteção ou assistência para os setores mais desassistidos da sociedade.

Mentalidades autoritárias proliferam num mundo desencantado e inseguro, multiplicam-se em meio à comunicação digital, propondo igualdade na rede, linguagem erotizada, grosseira, crua, supostamente objetiva ou realista. Na contrapartida, mentalidades autoritárias desmobilizam o lugar e o espaço onde se constrói um Eu marcado por uma consciência crítica, maleável, compartilhada na construção do seu desenho em relação ao mundo e à sociedade em que se vive.

O resultado da troca de palavras, por parte de Trump, sugere uma mentalidade afinada com o autoritarismo, herdeiro das nossas tradições patriarcais, cujo desdobramento é a subserviência a personalidades dominadoras, reacionárias e aparentemente protetoras. Personalidades cujas marcas, não raro, estão ancoradas no desejo de violência e destruição com origem no excesso de autoritarismo do patriarca/pai. A violência e a agressividade fazem parte desse pacote patriarcal, não raro machista, com ares paternais.

As origens do mal-estar presente nos autoritarismos são fruto de inseguranças, de um medo original. Ele cresce em situações marcadas por instabilidades e maleabilidades de normas e decisões proferidas por pessoas ou instituições típicas do estado democrático. O mal-estar avoluma-se com a flexibilização de temáticas voltadas para questões de gênero, com a possibilidade de mudanças de hábitos e costumes, especialmente da mulher, com base na ciência e com as críticas jornalísticas apontando erros e sugerindo novas pautas para a sociedade em que se vive.

O conservador teme a perda de seu território, a diferença de costumes e a mudança de hábitos usando como arma de defesa a desqualificação, negação ou silenciamento do Outro, das diferenças e dos hábitos renovados. Para ele, para o conservador, o contraditório é apenas um argumento retórico, não raro feminino e pouco prático.

O conservadorismo cresce no espaço do abandono criado por uma sociedade incapaz de prover laços de solidariedade comunitária, distribuição de renda e formas de parceria ou associação.

“A palavra imunidade é descartada, esquecida, convertida em outra, um grande desejo de Trump e de outros personagens similares: mentalidade de rebanho, de gado ou carneiro, não importa, todos mirando o pastor” – Foto: Pixabay

O conservadorismo viceja na atualidade, apesar dos longos anos de difusão do pensamento iluminista, positivista, racionalista. A história da racionalidade iluminista é defendida há anos, com unhas e dentes, por parte das elites políticas, sem solucionar ou amenizar as situações de pobreza extrema de largos contingentes populacionais. O resultado da repetição de um mesmo discurso ensaboado e escorregadio, sem resultados práticos, foi o desencantamento e a desilusão com o pacote todo: racionalidade, pensamento científico e o modelo político de busca de consenso.

O abandono de vastos contingentes populacionais por parte dos Estados nacionais gerou afastamento da razão, da política desenvolvida nos moldes tradicionais e a aproximação do pensamento mágico ou das diversas formas de religiosidade, ambos capazes de produzir esperança, utopias, cooperação, proteção, unificação e padronização dos desejos e dos comportamentos conformados em arquétipos tradicionalmente conhecidos, especialmente no que diz respeito a gênero.

Sem proteção do Estado e de laços comunitários, dissolvidos em grande parte no processo de urbanização, a necessidade de amparo se tornou um imperativo, cuja válvula de escape foi um retorno às origens imaginárias, a um mundo marcado pela ordem, disciplina rígida, pela repetição dos hábitos e costumes, segurança, um modelo retrógrado, garantido por um pai supostamente protetor capaz de pensar e se responsabilizar por tudo e por todos, sem colocar questões,  difíceis e angustiantes, ou esperar por respostas em um mundo em mudança.

Frente a esse quadro, a palavra imunidade é descartada, esquecida, convertida em outra, um grande desejo de Trump e de outros personagens similares: mentalidade de rebanho, de gado ou carneiro, não importa, todos mirando o pastor. O momento do ato falho é significativo. A pressão do entrevistador e do público contra Trump era grande e foi acentuada por eleitores profundamente insatisfeitos com as políticas de saúde (covid) e com o desamparo das populações imigrantes.

É sugestivo lembrar que a palavra imunidade sugere a lembrança de células de memória capazes de reconhecer os microrganismos causadores de doenças. Memória é um dos ingredientes nocivos para o pensamento conservador, da mesma forma que a investigação científica também é danosa para esse tipo de pensamento, por ser capaz de localizar patógenos, verdadeiros responsáveis pelas doenças do corpo e da sociedade. O conhecimento científico é capaz de desenvolver mecanismos adequados para solucionar problemas, trazer a cura, evitar doenças e mortes. Mas, ao mesmo tempo, o pensamento com base na ciência é doloroso, e não raro angustiante, porque faz ver a liberdade como espaço limitado, a vontade como desejo contido e a angústia como uma constante, diante do inusitado e imponderável que é a vida.

Em suma, existe explicação para o ato falho do presidente Donald Trump.

Resumo da ópera:

O pensamento conservador na sua gênese é violento e se nutre da cegueira e do desejo da destruição do que é diferente;

O pensamento conservador, em muitas circunstâncias, age para desintegrar memórias do passado e negar dados comprovados cientificamente. Nega, especialmente, os fatos reais, atos de barbárie cometidos contra a humanidade (campos de extermínio, guerras e destruição do meio ambiente) e, especialmente, o que é de consenso, aceito pela maioria das pessoas. O pensamento conservador quer matar e esquecer a sua própria origem;

A salada de Trump, confundindo imunidade de rebanho com mentalidade de rebanho, é um convite sugestivo para se discutir a história de uma mentalidade conservadora, cada vez mais voltada para os cálculos (inicialmente utilizados na guerra), avaliações quantificadas (de produtos, pessoas e políticas), medindo e separando estatisticamente, com o auxílio de algoritmos, números capazes de produzir cegueira (fake news) sobre as coisas, as pessoas e os projetos políticos.

O que fica para trás dessa estética do absurdo?

Resta pouco.

Restam indagações simples, a busca de sentido para cada objeto ou pessoa, o sentido posto na natureza da qual somos parte, e, todo.

Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP


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