Suicídio e os profissionais – desafios e dilemas

Maria J. Kovács é professora do Depto. de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP

 26/09/2018 - Publicado há 6 anos
Foto: Francisco Emolo / USP Imagens
Setembro Amarelo é tempo de falar sobre suicídio, um tema tabu que agora tem voz, principalmente no que concerne à prevenção e diminuição do número do mesmo, envolvendo diversas modalidades de campanhas. Mas precisamos focalizar também na esfera dos cuidados com quem tem ideação, tentou suicídio uma ou mais vezes, aos familiares impactados por essas tentativas ou pela morte de seus entes queridos. Cuidados também aos profissionais que perdem seus pacientes, apesar do seu esforço, sentindo-se fracassados e culpados pela morte deles.

Muitos profissionais se perguntam o que fazer diante de uma pessoa com ideação ou tentativa de suicídio. Como mecanismo de proteção, para não se confrontar com sua incerteza, se negam a atender pessoas nessa condição, utilizando manobras defensivas. Observamos que alguns falam mais do que ouvem, julgam clientes e em atitude contratransferencial descontam neles sua incapacidade, dúvida, incompetência, raiva e outros sentimentos, perdendo a possibilidade de escuta. Essa atitude precisa ser revista.

Há profissionais que se negam a receber pessoas que tentam suicídio afirmando que não podem perder seu tempo tão corrido atendendo pessoas que querem morrer, já que precisam se dedicar àqueles que preferem viver. É muito categórico dizer que todas as pessoas que não suportam mais viver a vida atual querem de fato morrer. Há aqueles que não desejam mais viver essa vida, mas aceitariam continuar vivendo, se pudessem eliminar sua dor, sofrimento, humilhação, vergonha, incapacidade, e tantas outras razões. Tratar todos os pacientes, que chegam aos seus cuidados, como se fossem realizar o ato suicida para morrer é escutar os seus próprios pensamentos e ideias preconcebidas, sem conseguir entrar em contato com quem estão buscando cuidar.

Tentativas de suicídio podem ser vistas como ações que têm como objetivo chamar atenção, enfatizando seu aspecto manipulador. Se vistas como ações somente para atrair atenção, podem conduzir a um não cuidado, já que o aspecto manipulador é o que predomina. Entretanto, sob uma outra visão, o ato suicida tem o objetivo sim de chamar atenção para algo que não vai bem na vida da pessoa e, nesse caso, seu aspecto de comunicação é o que fica ressaltado, demandando escuta e cuidados.

Encontramos essas dificuldades mais frequentemente em profissionais que atendem pessoas que buscam os prontos-socorros com sequelas do ato suicida. Chegam assustados, impactados pelo seu ato, ambivalentes por vezes, com profundo sentimento de fracasso, afirmando que não têm capacidade nem para se matar. Ao receber desprezo, preconceito, pessoas que se questionam se vale a pena viver terão mais uma razão para desistir da vida. Trata-se de iatrogenia, formas de atendimento que aumentam o sofrimento.

Há hospitais em que não há atendimento de profissionais de saúde mental, sem proposta de continuidade dos cuidados a quem chega após tentativa de suicídio. Pessoas que realizam o ato suicida voltam ao seu ambiente sem respaldo ou cuidados de saúde mental, desgastados, o que pode estimular a recorrência de tentativas que podem ser letais. Infelizmente a proposta de continuidade de atendimento de saúde mental, como proposto pela agenda de prevenção do suicídio e diminuição de danos de 2006, muitas vezes não é colocada em prática.

Muitos profissionais se perguntam o que fazer diante de uma pessoa com ideação ou tentativa de suicídio. Como mecanismo de proteção, para não se confrontar com sua incerteza, se negam a atender pessoas nessa condição, utilizando manobras defensivas.

O projeto da Organização Mundial da Saúde (OMS) denominado Estudo Multicêntrico de Intervenção ao Comportamento Suicida (SUPRE-MISS) demonstrou como é importante ajudar pessoas que tentam suicidar-se. No Brasil o projeto foi coordenado por Neury Botega, da Unicamp, com resultados significativos na prevenção da reincidência de tentativas de suicídio. Pessoas que tentaram suicídio foram convidadas a participar da pesquisa. Houve uma divisão em dois grupos, no primeiro dos quais foram avaliados e encaminhados a serviços na rede de saúde. No segundo grupo, além do encaminhamento, os pacientes também receberam informações sobre suicídio e fatores que podem levar à tentativa de suicídio. Além disso, o grupo 2 recebeu nove ligações da equipe que os atendeu no hospital, com intervalos crescentes durante um ano e meio e nessas ligações havia estímulo para que procurassem ajuda. Ao fim do estudo no primeiro grupo 2,2% morreram de suicídio e no segundo 0,2 % (Zorzetto e Fioravanti, 2009). É uma diferença muito significativa, que deve ser considerada nos atendimentos para pessoas que tentam suicídio em serviços de pronto socorro. Além de cuidados humanizados, o encaminhamento e continuidade de cuidados parecem ser a melhor combinação para ajudar pessoas com ideação e tentativa de suicídio.

Para um bom cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio, precisamos nos dedicar à formação de profissionais de saúde com especialização na área. São poucas as disciplinas que se propõem a discutir o tema do suicídio nos cursos de graduação na USP. No Instituto de Psicologia, a disciplina Psicologia da Morte (PSA 3512) aborda o tema suicídio em três aulas. Em 2018 observamos uma grande procura da disciplina por estudantes de várias unidades da USP, chegando ao número de 333 interações no sistema Júpiter, o que demonstra o quanto estudantes de várias áreas se interessam ou precisam discutir o tema. Pudemos acomodar 100 estudantes na maior sala do IP. Cabe ressaltar também que o maior interesse dos estudantes é sobre o tema do suicídio, o que ficou confirmado pelas respostas sobre a motivação para frequentarem a disciplina e pela escolha do tema suicídio para realizar o trabalho de conclusão do curso. A partir desses dados, apontamos a importância de desenvolver o tema nas disciplinas em vários cursos da USP, enfatizando uma perspectiva multidisciplinar. Além da graduação, é preciso desenvolver o tema também na pós-graduação e estimular pesquisas na área. Oferecemos a disciplina A Questão da Morte nas Instituições de Saúde e Educação (PSA 5861) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, em que o tema suicídio comparece em várias aulas. Temos ainda orientado dissertações e teses sobre o tema. É um grão de areia na tarefa essencial de oferecer formação na maior universidade de nosso país. Ainda ampliando esse grão, em 2016 oferecemos a disciplina Suicídio: Prevenção e Luto (PSA 5921-1) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia USP na pós-graduação a partir do pós-doutorado de Karina Fukumitsu (bolsista PNPD/Capes), Cuidados e Intervenções para Sobreviventes Enlutados por Suicídios. Foi oferecida uma vez, pois era uma das atividades do pós-doutorado de Karina.

Para um bom cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio precisamos nos dedicar à formação de profissionais de saúde com especialização na área. São poucas as disciplinas que se propõem a discutir o tema do suicídio nos cursos de graduação na USP.

Ressaltamos que o cuidado a pessoas com ideação e tentativas de suicídio e a familiares enlutados é tarefa para profissionais especializados numa perspectiva multidisciplinar. É importante que o País, nas suas diversas instituições de saúde, constitua um corpo de profissionais que possa coordenar as propostas de cuidados à população com sofrimento existencial nas suas necessidades específicas. Juntamente com as campanhas que desenvolvem atividades para a prevenção do suicídio, utilizando cartilhas, e programas de valorização da vida. É necessário o mesmo empenho para compor equipes multidisciplinares de cuidados nas várias instâncias de saúde mental em nosso país, a destacar os ambulatórios de saúde mental, os CAPS e UBS em todo o País. Essa é a meta proposta pelo Ministério da Saúde na sua Agenda Estratégia em 2016. Quanto à USP, espera-se que possa compor um grupo de especialistas que teria para si a tarefa de empreender a formação de estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais para estabelecer discussões e reflexões sobre o tema. E também para elaborar programas de cuidados para a população de estudantes, funcionários e docentes da própria universidade, mas, e principalmente, também oferecer subsídios para muito além da USP, à população brasileira, subsidiando políticas públicas não só de prevenção do suicídio, mas também da posvenção, entendida como cuidados que se propõem a diminuir o impacto das tentativas de suicídio para quem consuma o ato e para familiares que vivem o processo de perda de pessoas pelo suicídio.

Bibliografia

 ZORZETTO R, FIORAVANTI C (2009). “Por um fio”. Pesquisa Fapesp, Edição Impressa, 158.

BOTEGA N J (2006). Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. 2. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2006.

WERLANG BG, BOTEGA NJ. (2004). Comportamento suicida. Porto Alegre: Artmed Editora.


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