Olimpíada antropofágica

José Carlos Marques – Ludens-USP

 22/08/2016 - Publicado há 8 anos

Êxitos e fracassos dos Jogos Rio 2016 reatualizam conceitos do célebre manifesto do modernismo brasileiro

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José Carlos Marques é integrante do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) do Departamento de História da FFLCH-USP e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp, campus Bauru – Foto de Marcos Santos/USP Imagens
Em 1928, o escritor Oswald de Andrade lançava o seu Manifesto Antropófago (ou Manifesto Antropofágico), no qual defendia a tese de que a cultura brasileira, mantendo-se indiferente ao racionalismo e historicismo europeus, possuiria a peculiaridade de saber assimilar e transformar os valores ocidentais, criando novas sínteses: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil”.

O ideal antropofágico deveria ser capaz, portanto, de digerir o legado cultural estrangeiro e (re)significá-lo por meio de uma arte tipicamente brasileira.

Finalizados os Jogos Olímpicos Rio 2016, podemos perceber como a capital fluminense e o Brasil, por extensão, conseguiram retomar, mesmo que de maneira inconsciente, grande parte dos conceitos do célebre manifesto oswaldiano.

A despeito das controvérsias da Semana de Arte de 1922 (que teria protagonizado um modernismo mais paulista do que nacional e ignorado algumas figuras de proa da cena cultural do Rio de Janeiro – como o cronista João do Rio), parece-nos inegável perceber o quanto a Olimpíada sediada na “Cidade Maravilhosa” recolocou em marcha a prática da antropofagia, aproveitando do outro o que ele tem de bom a oferecer e incorporando-o a práticas lúdicas de criação.

Isto pôde ser visto, por exemplo, tanto na cerimônia de abertura como na cerimônia de encerramento dos jogos, dois momentos por demais simbólicos e ritualísticos de um megaevento esportivo que, por si só, nasce justamente da necessidade de se perpetuar vários simbolismos e rituais helênicos tidos como berço da civilização ocidental.

Em fins do século 19, quando inúmeras modalidades esportivas passam a ser regradas e regulamentadas na Europa, a criação dos chamados Jogos Olímpicos da Era Moderna representa acima de tudo a afirmação do empreendedorismo aristocrático personalizado pelo barão Pierre de Coubertin, articulador de uma grande feira internacional para o congraçamento dos povos por meio do ideal da paz do olimpismo.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil (Manifesto Antropofágico).

Não se pode perder de vista exatamente o fato de que as Olimpíadas são fruto de uma iniciativa eurocêntrica, liberal, capaz de secularizar práticas e crenças ancestrais. O antropólogo francês Daniel Dayan e o sociólogo norte-americano Elihu Katz, em artigo de 1994 (Defining Media Events: high holidays of mass communication), propagavam ainda a ideia de que os jogos olímpicos – entendidos como “eventos midiáticos” – aproveitavam a potência eletrônica dos meios de comunicação para atrair a atenção mundial e contar simultaneamente uma história.

Esses eventos trariam um “convite ao rompimento da rotina diária” e à união em torno de uma “experiência festiva”. Por fim, promoveriam “ocasiões cerimoniais”, nas quais se conjugaria um tratamento estilístico reverente e protocolar, como se o público fosse transportado para o “centro sagrado de nossa sociedade”.

Ora, é por demais sabido que a primeira Olimpíada realizada na América do Sul metamorfoseou-se da euforia desenfreada vivida a partir de outubro de 2009, quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu-se pela candidatura da cidade do Rio de Janeiro, para uma desconfiança generalizada às vésperas do início da competição, em agosto de 2016.

A escassez de recursos e a crise político-econômica do Brasil nos últimos anos impediram que os jogos transcorressem como imaginado – e muitas das promessas elencadas no dossiê da candidatura entregue ao COI não puderam ser cumpridas. Mesmo assim, o público brasileiro e estrangeiro foi transportado para o “centro sagrado de nossa sociedade” por meio de uma “experiência festiva” carregada de “ocasiões cerimoniais”.

Incapaz de concorrer com o capital simbólico grego de Atenas 2004; incapaz de competir com a pujança econômica chinesa de Pequim 2008; e incapaz de rivalizar com a tradição aristocrática britânica de Londres 2012, o Rio de Janeiro teve que optar por aquilo que vem singularizando o Brasil há tempos: a emoção, a cordialidade (por vezes interpretada como sinônimo da afabilidade do brasileiro, quando na verdade remonta ao predomínio da emoção sobre a razão dada a raiz latina do termo), o improviso, a carnavalização e a gambiarra – como proferido pelos organizadores da cerimônia de abertura.

A escassez de recursos e a crise político-econômica do Brasil nos últimos anos impediram que os jogos transcorressem como imaginado – e muitas das promessas elencadas no dossiê da candidatura entregue ao COI não puderam ser cumpridas. Mesmo assim, o público brasileiro e estrangeiro foi transportado para o ‘centro sagrado de nossa sociedade’ por meio de uma ‘experiência festiva’ carregada de ‘ocasiões cerimoniais’.

Em uma só palavra, optou-se por uma “antropofagia barroca”. Ou, como o mesmo Oswald defendia no Manifesto da Poesia Pau-Brasil: “O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito”.

Bem antes, na candidatura para trazer os jogos para o Rio de Janeiro, os organizadores do dossiê brasileiro já sublimavam os aspectos emocionais por meio do slogan Viva sua paixão, criado em 2008 como peça de campanha.

Matéria publicada no sítio oficial da Rio 2016 justificava ainda a escolha do slogan ao afirmar que ele traduziria “a maneira do brasileiro de se envolver apaixonadamente em tudo o que faz”[1]. Não é de estranhar, portanto, que aspectos emotivos tenham ganho tanto protagonismo e visibilidade no discurso da candidatura oficial e que tenham sido mimetizados posteriormente pelo discurso televisivo.  Os encantos da “Cidade Maravilhosa”, extremamente valorizados durante todo o evento, só remitificaram nossa cordialidade festiva.

Uma das melhores sínteses (antropofágica, diríamos) sobre os Jogos Rio 2016 publicadas no calor dos acontecimentos, ou seja, logo após o encerramento do megaevento, foi o artigo de Carla Jiménez, escrito para a versão brasileira do jornal El País. Para ela, o Brasil seria composto de uma identidade aparentemente bipolar; somos um país “que se entristece por não ser completo como gostaria, mas que comove e contagia com a sua alegria quando acerta o passo” [2].

Diríamos que o País comove e contagia também quando aparentemente não acerta totalmente o passo, como nos variados episódios em que a manifestação vinda das arquibancadas foi a tônica de críticas oriundas de diversas frentes. Atletas e equipes que disputavam qualquer coisa diante de brasileiros eram apupados e vaiados; na abertura no Maracanã, não se poupou sequer a delegação da Argentina, nem o presidente interino, como se era de esperar.

E se as festas de abertura e encerramento dos jogos procuraram exatamente exaltar a cultura nacional no que ela tem de aceitação da diversidade e da tolerância, não foram poucas as demonstrações de intolerância e até de xenofobia que se ouviram em certos momentos nas arenas esportivas – prova de uma sociedade violenta, que buscou canalizar as hostilidades do cotidiano por meio de xingamentos e impropérios catárticos típicos do ambiente futebolístico.

O escritor Nelson Rodrigues, um dos maiores intérpretes da alma brasileira, há muito diagnosticara que “no Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, se quiserem acreditar, vaia-se até mulher nua”, ou então que “a grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem”.

Competidores estrangeiros, especialmente os europeus, perceberam na carne que o público brasileiro não cede fácil ao espírito olímpico e à admiração gratuita. Mas até esse comportamento do público acabou gerando um fim pedagógico (“Todas as vaias são boas, inclusive as más”, também diria o genial Nelson).

As seleções masculinas da Alemanha e da Itália, derrotadas pelo Brasil nas decisões do futebol e do vôlei, respectivamente, foram aplaudidas pela plateia brasileira quando subiram ao pódio para receber as medalhas de prata. Ou como o memorável poema VIVA VAIA de Augusto de Campos já preconizava, igualmente de forma antropofágica e gráfica:

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Terminada a festa, é preciso retomar as rédeas do cotidiano, é preciso esperar um novo “convite ao rompimento da rotina diária”. Depois desta “experiência festiva”, difícil é voltar a ser o que éramos antes. Entre mortos e feridos, podemos dizer que não fizemos a Olimpíada dos sonhos ou a melhor Olimpíada da história, como prometido pelo discurso federal em maio de 2016, mas realizamos a Olimpíada possível.

Não cumprimos a meta tresloucada de medalhas imposta pelo Comitê Olímpico Brasileiro, mas tivemos medalhistas previsíveis e conhecemos medalhistas impensáveis, com aqueles sobrenomes populares com que nos deparamos no dia a dia.

E se as festas de abertura e encerramento dos jogos procuraram exatamente exaltar a cultura nacional no que ela tem de aceitação da diversidade e da tolerância, não foram poucas as demonstrações de intolerância e até de xenofobia que se ouviram em certos momentos nas arenas esportivas – prova de uma sociedade violenta, que buscou canalizar as hostilidades do cotidiano por meio de xingamentos e impropérios catárticos típicos do ambiente futebolístico.

Não tivemos a tecnologia de ponta, o racionalismo e os recursos financeiros das potências do Hemisfério Norte, mas tivemos (para o bem e para o mal) a caipirinha, a feijoada, o carnaval e uma capacidade ímpar de alegrar a vida – ainda que isto não nos livre de nossas mazelas históricas.

O futuro próximo nos dirá se o enorme parque olímpico construído no Rio de Janeiro deixará uma boa herança para a cidade e para o País ou se se converterá em novos infortúnios como algumas das arenas da Copa do Mundo de 2014. O futuro próximo nos entregará a verdadeira conta destes Jogos 2016 – e aí veremos se a experiência de fato valeu a pena.

Por ora, encerro estas reflexões com as três primeiras estrofes do poema Difícil ser funcionário, de João Cabral de Melo Neto, que sintetiza bem o clima de fim de festa pós-Olimpíada e que arremata este texto pouco ou nada antropofágico:

Difícil ser funcionário

Difícil ser funcionário

Nesta segunda-feira.

Eu te telefono, Carlos

Pedindo conselho.

 

Não é lá fora o dia

Que me deixa assim,

Cinemas, avenidas,

E outros não-fazeres.

 

É a dor das coisas,

O luto desta mesa;

É o regimento proibindo

Assovios, versos, flores.

 

[1] Disponível em http://www.rio2016.com/noticias/rio-2016-lanca-slogan-viva-sua-paixao-no-reveillon-2009.

[2] “E tudo saiu bem na Rio 2016, imperfeitamente maravilhosa”. Disponível em

http://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/21/opinion/1471813304_331779.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM.


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