O legado de Ali sobrevive a seu enterro

Luiz Carlos Fabre – Cepeusp

 10/06/2016 - Publicado há 8 anos

 Luiz Carlos Fabre, pugilista nos anos 1970, amador e profissional, medalha de prata no Panamericano do Canadá e professor aposentado do CEPEUSP

Luiz Carlos Fabre, pugilista nos anos 1970, amador e profissional, medalha de prata no Panamericano do Canadá e professor aposentado do Cepeusp

 

Estamos de luto, pranteando um grande ídolo; um dos maiores lutadores; ao lado de Pelé (pouquinho abaixo, na minha opinião, com todo o respeito às opiniões adversas), o maior ícone do esporte; um dos maiores sopros de vida que passaram por este vale de lágrimas.

Se para o mundo Mohammad Ali foi o maior ídolo de boxe, para mim, que me inspirei em sua técnica, conheci-o pessoalmente durante um card (eu, no card preliminar; Ali, no principal) e por ele fui tratado com gentileza (conquanto efêmero o contato, o legado é indizível).

Mohammad Ali nasceu Cassius Marcellus Clay Jr., em 1942 em Louisville, Kentucky (EUA). De origem pobre, filho de pai pintor e mãe empregada doméstica, foi descoberto e encorajado a praticar boxe aos 12 anos pelo oficial de polícia americana Joe Martin, quando brigava na rua para defender sua bicicleta de um ladrão que queria roubá-la.

Pelo início da trajetória, já dá para perceber que Mohammad Ali começa, bem cedo, lutando pela sobrevivência, daí ele dizer: “Campeões não são feitos em academias. Campeões são feitos de algo que eles têm profundamente dentro de si, um desejo, um sonho, uma visão”.

Comecei a treinar boxe também aos doze anos. Interessei-me pela modalidade porque eu gostava de lutar e por assistir a meus ídolos lutando na televisão.

Havia a família Jofre, cujo mais famígero foi o Éder, um dos melhores lutadores de todos os tempos, campeão mundial dos pesos-galo e pena (numa época de poucos cinturões, associações mais genuínas do que as inúmeras que atualmente grassam).

Campeões são feitos de algo que eles têm profundamente dentro de si, um desejo, um sonho, uma visão

Nos ringues, o que mais me marcou em Ali era o contraste entre sua leveza e sua força: um bólido de mais de cem quilos balançando, fintando, gingando e se esquivando com a leveza de um médio-ligeiro para desferir um canhão no queixo do adversário na hora certa.

Provavelmente o mais habilidoso e melhor peso pesado que já existiu, um posto que disputa com Joe Frazier. Tal qual Pelé no futebol, era um destro que alternava com perfeição a postura do canhoto. Quem luta sabe o talento e a quantidade de treino que isso requer.

Também era singular a sua coragem. Sabem quanto pesa um soco de George Foreman? Não sei mensurar, mas deve corresponder a um coice. Imagine-se rindo, provocando, encarando de guarda baixa um tanque desses…

Claro, provavelmente essa coragem haja lhe custado alguma aceleração no processo de cronificação desta terrível moléstia neuromotora que amaldiçoa lutadores e que alguns vêm chamando de síndrome do boxeador (vemos Éder Jofre, Maguila e eu próprio padecendo de sequelas, mas infelizmente é difícil dizer o que fazer: tirar-nos o pancrácio é tirar-nos o ar que respiramos).

Além de ter todas essas qualidades que um lutador de boxe necessitava, ainda tinha o dom de se auto-promover. Foi o maior marketing pessoal já visto no boxe.

A cada luta, a cada desafio, conseguia chamar a atenção da mídia do mundo inteiro, criando uma expectativa onde todo mundo aguardava para assistir à luta/show. O que foi aquela luta do século no Zaire!

Como lutador amador, obteve 100 vitórias e apenas 5 derrotas. Conquistou vários títulos amadores, mas o principal foi a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960, a mesma que, se diz, atiraria em um rio como um ato de revolta por lhe haverem recusado atendimento em um restaurante na sua segregacionista terra natal. Saibam que o ouro olímpico do boxe é realmente algo de muito valor.

Também era singular a sua coragem. Sabem quanto pesa um soco de George Foreman? Não sei mensurar, mas deve corresponder a um coice

O fascínio de Clay pelo islamismo é indissociável de seu ativismo político. Dir-se-ia que aderira à religião, em 1964, em ato de protesto, sob influência da seita Muçulmanos Negros. Recebera então um novo batismo e um novo nome. Surgia Mohammad Ali.

Coragem e firmeza de caráter sempre foram sinônimos de Ali e seria justa a presença dessas palavras em seu epitáfio. Após a Olimpíada, servia o exército americano quando foi convocado a combater na Guerra do Vietnã.

Recusou-se por escusa de consciência, repudiando lutar tão longe por uma pátria que tanto se omitia no reconhecimento de humanidade a seus irmãos de cor. Em consequência de sua rebeldia, foi preso, teve seu título cassado e ficou suspenso do boxe por três anos.

Posteriormente foi inocentado e sua memória foi reabilitada com a simbólica restituição da medalha olímpica em 1996, nos Jogos Olímpicos de Atlanta, onde foi homenageado acendendo a Pira.

Na categoria profissional, após 20 lutas Ali fez sua primeira disputa pelo título mundial, aos 22 anos de idade, sagrando-se campeão pelas versões “THE RING”, “WBC”, “WBA”,”NABF”.

 

Coragem e firmeza de caráter sempre foram sinônimos de Ali e seria justa a presença dessas palavras em seu epitáfio

 

Mohammad lutou e ganhou 32 lutas de defesa do título mundial dos pesos pesados. Ao todo, como profissional, foram 61 lutas sendo 56 vitórias e destas, 37 foram por nocaute.

Por este histórico de lutas, é possível perceber por que ele foi uma lenda; trata-se do atleta que mais vezes colocou o cinturão de campeão mundial em jogo.

Encerrou a carreira em 11/10/81, após derrota para Trevor Berbick.

Começou a apresentar problemas de saúde, talvez efeito do boxe, problemas que estamos acompanhando de perto como o do Eder Jofre, Maguila e meu, diagnosticado como encefalopatia com lesões crônicas, doença degenerativa ainda em estudo pelos médicos da USP, dr. Renato Anguinah e equipe.

Os estudos avançam graças à generosa família do ex-zagueiro Bellini, cujo cérebro, acometido de iguais traumas, foi doado à medicina; infelizmente, ainda não há técnicas suficientes que permitam a reversão da doença.

Eu não sou o maior, sou duplamente o maior, porque não apenas nocauteio meus adversários, como escolho o round

Depois de 32 anos de batalha contra a doença, Mohammad Ali nos deixa aos 74 anos.

Como grande marqueteiro, Ali nos deixou frases que revelavam seu modo de ver a vida, como estas:

“Eu não sou o maior, sou duplamente o maior, porque não apenas nocauteio meus adversários, como escolho o round”

“Às vezes, tento ser modesto, mas aí começa a me faltar argumentos”.

“O homem que não tem imaginação, não tem asas”.

“Aquele que não tem coragem suficiente para aceitar riscos, não irá conquistar nada na vida”.

“A força de vontade deve ser maior que a habilidade”.

“Quando se é tão grande quanto eu, é difícil ser humilde”.

E a melhor autodefinição que já vi:

“Voe como uma borboleta, mas ferroe como uma abelha”.

Adeus, eminente pugilista, pugilista dos ringues, pugilista da vida!  Para coroar uma vida tão intensa, Muhammad Ali foi indicado ao prêmio Nobel da Paz em 2007, não apenas pelo seu estupendo trabalho contra o racismo nos Estados Unidos da América, como também por seu trabalho de caridade pelo mundo todo, durante toda sua vida.

Nota não menos importante: a época em que Ali lutou foi considerada a era dourada dos pesos-pesados.

 

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.