Porém, um fenômeno também tem acontecido. Ministro na ECA-USP as disciplinas para a graduação Comunicação, Culturas e Diversidades Étnico-sociais e Comunicação, Subjetividade e Representações. As duas abordam a questão das subjetividades e elementos simbólicos, fazendo interseção com as culturas e as comunicações.
Há alguns semestres tenho sido tomado de sobressaltos ao falar de gênero em minhas aulas, que é um dos conteúdos das duas disciplinas. Ao abordar a temática, algumas alunas indignadas costumam dizer que não posso falar sobre gênero porque estou tirando o protagonismo das mulheres; interromper uma aluna que está se alongando em uma fala ou questioná-la sobre determinado assunto tem sido considerado silenciamento das mulheres.
Preocupado com os diferentes casos que aconteciam em classe, resolvi perguntar aos outros professores homens se estavam tendo experiências semelhantes e descobri que sim. Palavras como silenciamento, provocações acadêmicas e retirada de protagonismo são argumentações frequentes.
Para entender melhor o processo atual, resolvi levar ao Diversidade em Ciência, programa de entrevistas que dirijo e apresento na Rádio USP, voltado para a questão das diversidades e direitos humanos, a temática. Convidei o Coletivo Poligen, da Escola Politécnica da USP, e o Coletivo Feminista Lélia Gonzalez, dos cursos de Ciências Sociais e Filosofia da FFLCH-USP.
A entrevista, que foi ao ar na segunda semana de março, foi elucidativa e pude perceber que os coletivos feministas da USP têm características diferenciadas, indo desde os de tendência radical, passando pela assistencial até a intersecional, e que não há consenso entre eles, mas um certo respeito pelas linhas ideológicas adotadas.
Venho estudando há algum tempo o feminismo, é o intersecional que considero mais interessante e contemporâneo e é sobre ele que falarei neste artigo.
Ao falar em feminismo intersecional alguns nomes são imprescindíveis, como Kimberlé Crenshaw, que cunhou este nome em 1989, Angela Davis e Judith Butler.
O feminismo intersecional é o mais interessante porque ele transforma objetos em sujeitos e as suas idiossincrasias, fazendo a interseção entre classes sociais, etnia, orientações sexuais, transexualidade, dentre outros.
A pesquisadora Kinberlé Crenshaw, que é professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia, vem desenvolvendo o conceito e constituindo o campo teórico da interseção das desigualdades de raça e de gênero e a teoria legal afro-americana e do feminismo.
Para ela, o feminismo intersecional são “formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo”, conforme aborda em sua obra Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero.
O feminismo intersecional é o mais interessante porque ele transforma objetos em sujeitos e as suas idiossincrasias, fazendo a interseção entre classes sociais, etnia, orientações sexuais, transexualidade, dentre outros.
Ao trazer a questão da transversalidade, Crenshaw amplifica o feminismo, movimento que muitas vezes traz mais as demandas das mulheres brancas e burguesas. Ela ressignifica os feminismos e traz para o centro dos debates as diversidades. Ela ainda reconhece que Angela Davis foi importante no processo de elaboração do conceito da intersecionalidade.
A ativista Angela Davis, ao escrever em 1981 o livro Mulheres, raça e classe, já trazia a questão da intersecionalidade, apesar da inexistência do termo. Questões sobre as mulheres negras e as suas classes foram importantes tópicos de sua obra e também o questionamento sobre a opressão da mulher negra pela mulher branca.
A obra de Angela Davis é tão contemporânea que foi relançada em 2016, com o título Angela Davis: mulheres, raça e classe, pela Editora Boitempo. O livro traz questões da história de liberdade da mulher negra, nos Estados Unidos; a campanha pelos direitos civis das mulheres negras, o movimento sufragista; as demandas das mulheres trabalhadoras; as mulheres comunistas; os direitos reprodutivos, como o aborto, dentre outros.
Outra pesquisadora e ativista que vai possibilitar o entendimento da intersecionalidade é a filósofa Judith Butler, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, com a Teoria Queer.
A Teoria Queer é apresentada na obra Problemas de gênero, de Butler. Essa teoria vai afirmar que a identidade sexual e a orientação sexual são construções e que não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana.
Esse pensamento vai confrontar o feminismo radical, que não considera as demandas das pessoas transexuais como sendo feministas. Diferente do feminismo intersecional, que as coloca como uma questão a ser analisada.
O filme Preciosa: uma história de esperança, de Lee Daniels, permite entender melhor a questão da intersecionalidade. No filme, a personagem Claireece “Preciosa” Jones é uma adolescente de 16 anos, negra e obesa. É abusada pela mãe; violentada frequentemente pelo pai, de quem contrai Aids, além de ficar grávida dele, tendo uma criança com síndrome de Down. Com dificuldade de aprendizado e grávida do pai pela segunda vez, é expulsa da escola.
Considero que o filme, baseado na obra da escritora Sapphire, é uma metáfora da intersecionalidade, uma vez que transita em questões como gênero, etnia, sexualidade, estética corporal e tantas outras.
O feminismo intersecional é um dos grandes avanços para a discussão de gênero. Diferente do feminismo radical, ele alarga o debate e impede que se reduza a questão a interesses de mulheres brancas burguesas, que limitam o debate ao silenciamento de tudo que possa ser diferente delas, inclusive as suas empregadas domésticas negras, exploradas por questões de classe e etnia.