Escravização, trabalho, imaginário e imprensa

Ricardo Alexino Ferreira é professor associado (livre-docente) da ECA-USP

 15/05/2017 - Publicado há 7 anos
Ricardo Alexino Ferreira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
A relação da imprensa com a abordagem do trabalho nunca foi tranquila. Isso porque a visão da mídia no campo do trabalho está muito associada ao atendimento das necessidades patronais, da manutenção da ordem e do lucro. E essa produção de sentidos se agrega a várias outras construções, que vão alimentar o imaginário social.

A coisificação do trabalhador como uma engrenagem de uma grande máquina é constantemente narrada nas produções jornalísticas. Deve-se sempre trabalhar para se dignificar. Por isso, o não trabalhar, para as classes na base da pirâmide social, constitui-se em uma negação da virtude.

Várias matérias jornalísticas em relação às greves são de posicionamentos contrários aos movimentos sociais. Nesse sentido, a greve será sempre um transtorno. Imagine uma greve de motoristas de ônibus. Na maior parte das vezes, as manchetes serão construídas da seguinte forma: “Milhões a pé por causa de greve de motoristas de ônibus”. Em contrapartida, pouquíssimos veículos da grande imprensa irão dizer: “Motoristas fazem greve por melhores salários”.

Essas construções discursivas estão tão arraigadas no imaginário social, que é muito difícil removê-las, considerando que existe toda uma lógica para a sua manutenção, inclusive para o próprio profissional jornalista, que muitas vezes não se vê como trabalhador, mas equivocadamente como intelectual da informação.

A relação da imprensa com a abordagem do trabalho nunca foi tranquila. Isso porque a visão da mídia no campo do trabalho está muito associada ao atendimento das necessidades patronais, da manutenção da ordem e do lucro.

A fábula A Cigarra e a Formiga (ou O Gafanhoto e a Formiga, no original) é um dos contos atribuídos ao fabulista grego Esopo, no século VI a.C., tendo sido recontado pelo poeta Jean de La Fontaine, no século XVII.

Em A Cigarra e a Formiga, conta-se a história de uma formiga que trabalhava incessantemente no verão estocando comida, enquanto a cigarra (ou gafanhoto) se punha simplesmente a cantar. No inverno, a cigarra que não trabalhou no verão vai pedir comida à formiga. Esta nega a ajuda argumentando que a cigarra arcasse com a sua escolha; por ter preferido cantar a trabalhar.

A fábula traz elementos complicadores, considerando que o trabalho braçal intenso está afeito ao trabalhador, que deve ter como princípio a disciplina da formiga (constante e focada) e deve refutar a representação simbólica da cigarra, afeita ao individual e ao criativo.

Durante muito tempo, esse tipo de pensamento fez parte da lógica do trabalho constante, voltada para as classes da base piramidal. Assim, usufruir da arte era tido como algo associado à ideia da preguiça quando realizado pelo trabalhador.

O sociólogo Domenico De Masi, com o seu conceito de “ócio criativo”, vai desconstruir essa lógica ao propor que o trabalho deve estar associado também à lógica do tempo livre do trabalhador. Ou seja, a valorização de longos intervalos em que o ócio deve ser estimulado, e não evitado pela classe trabalhadora.

É importante entender, por outro lado, que o trabalho também vai estar associado com os ideais das religiões. A ética protestante ou puritana do trabalho vai apregoar a prosperidade, o acúmulo de bens como bênção divina. Já o catolicismo vai enfatizar o trabalho como uma designação de Deus. O trabalho do trabalhador voltado simplesmente para o trabalho e não para o enriquecimento, por si só.

Assim, é possível entender o porquê de a escravização de povos africanos e indígenas ter sido bem-sucedida em países de matrizes católicas, como é o caso de Portugal e Espanha. A utilização do outro como extensão da máquina. Acreditava-se que a escravidão para africanos e indígenas seria um processo libertador para os escravizados.

Em A Cigarra e a Formiga, conta-se a história de uma formiga que trabalhava incessantemente no verão estocando comida, enquanto a cigarra (ou gafanhoto) se punha simplesmente a cantar. No inverno, a cigarra que não trabalhou no verão vai pedir comida à formiga. Esta nega a ajuda argumentando que a cigarra arcasse com a sua escolha; por ter preferido cantar a trabalhar.

Porém, essa mesma lógica não se aplicava (e ainda é assim) às elites. Nessas construções, a ideia do ócio é permitida aos “bem-nascidos”. A usufruição da contemplação da arte, do estudo e das benesses da vida é legitimada pelo ideal da meritocracia, da crença da superioridade étnica e a elevação social. Ou seja, a lógica do trabalho para o trabalhador não se aplica à mesma lógica para a elite. Esta se orgulha de ter desenvolvido a capacidade de exploração do trabalho do outro.

Ao analisar as matérias jornalísticas brasileiras, produzidas na segunda metade do século XIX, é possível entender que esse pensamento seguia uma lógica opressiva. Primeiro era reforçar a coisificação do escravizado e a sua predestinação à sua condição. Também era reforçada a ideia de que aquele grupo social não gostava de trabalhar, tornando-se necessário castigá-lo para adentrar o processo civilizatório. Daí a não necessidade de remuneração para esses escravizados, pois ela já estava contemplada no esforço da elite para fazer com que se tornassem civilizados. Esse tipo de cinismo está presente constantemente nos discursos da imprensa, da literatura e dos documentos da época.

Na contemporaneidade, não se admite a escravização, mas a exploração do trabalho do outro está muito presente em quase todos os estratos sociais. Existem casos em que faxineiras diaristas contratam outras faxineiras diaristas para que cuidem de suas casas, enquanto estão no trabalho. Em algumas situações, trabalhadores criticam veementes os feriados de que podem usufruir, alegando que os seus patrões terão perdas no lucro.

Porém, essa mesma lógica não se aplicava (e ainda é assim) às elites. Nessas construções, a ideia do ócio é permitida aos “bem-nascidos”. A usufruição da contemplação da arte, do estudo e das benesses da vida é legitimada pelo ideal da meritocracia, da crença da superioridade étnica e a elevação social.

Em países como o Brasil, o trabalho, que é tido como uma espécie de “desígnio divino”, é tido como uma obrigação a ser socialmente exercida. Daí o trabalhador, que passa horas em transporte público para chegar ao local do seu trabalho, com uma remuneração péssima, é estimulado constantemente a praticar essa lógica, quando, na verdade, nada sobra para ele, nem financeiramente nem existencialmente.

Há também uma construção ideológica de que ele deva defender os interesses patrimoniais porque assim deve ser. A Polícia Militar, por exemplo, cumpre a lógica de defesa do patrimônio e não da cidadania. Nesse sentido, o trabalhador acredita, ainda, que o trabalho e a sua qualificação estão muito associados ao grupo étnico a que pertence. Ou seja, acredita no determinismo social. Talvez esse determinismo seja a matriz da nossa escravidão contemporânea.

 


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