Religião e sociedade no Ocidente e a participação na política

Especialistas analisam o significado do sentimento religioso e comentam a respeito das principais mudanças da religião nas sociedades ocidentais

 18/01/2024 - Publicado há 4 meses
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O pensamento simbólico é uma das características mais marcantes do ser humano e a crença faz parte disso – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
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De forma conceitual, a palavra “religião” possui diferentes significados, mas pode ser definida como “um conjunto de crenças e práticas sociais relacionadas com a noção do sagrado”. A religião é intrínseca à sociedade, quase como algo inerente ao ser, sendo um dos fenômenos mais importantes da história humana e enraizada em diferentes esferas de diferentes culturas.

As doutrinas religiosas são responsáveis por guiar a vida das pessoas por meio do ensinamento de virtudes e incentivo à ação moral. Nesse sentido, o pesquisador do Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras da Universidade de São Paulo (CERNe-USP) Silas Fiorotti afirma que é interessante pensar que as metáforas religiosas sempre estiveram relacionadas com os modos de vida e com as respectivas ordens sociais e políticas.

A gênese da religião

A partir do surgimento da consciência, os indivíduos começaram a questionar as coisas que aconteciam ao seu redor e, ao não encontrar respostas para suas dúvidas, confrontaram os mistérios com a sacralidade. Nesse cenário, houve a ressignificação da vida mediante as perspectivas religiosas, responsáveis por dar sentido e direção para essas pessoas inquietas.

Renan William dos Santos – Foto: Reprodução Currículo Lattes/Fapesp

Renan William dos Santos, doutorando em Sociologia pela USP, ressalta que a religião é uma derivação da vivência comunitária, principalmente pelos momentos de exaltação. “Quando os seres humanos se juntam, eles experienciam uma efervescência coletiva e transferem isso para essa simbologia do sagrado, que remete a um mundo separado do mundo cotidiano, que não possibilita esse mesmo tipo de experiência”; para ele, essa é a raiz da religião.

Fiorotti comenta que os pesquisadores, seguindo uma abordagem antropológica da religião, buscam compreender as disposições e as motivações religiosas dos indivíduos para, dessa forma, visualizar os fatos e condições sociais que produzem tal perspectiva sacral: “Uma pessoa pode frequentar uma igreja apenas porque se sente bem nos cultos, sem necessariamente relacionar sua presença nos cultos com algum conjunto de crenças ou doutrinas”.

Ele complementa que há autores que associam as emoções dos rituais à fisiologia humana, assim buscam os elementos universais presentes no fenômeno religioso. Por esse ponto de vista, no templo religioso, a pessoa encontra algo maior do que ele, uma divindade que o supera e mostra um caminho melhor para se viver.

Por outro lado, segundo o especialista, a noção de crença pode limitar a compreensão geral da sociedade a respeito do fenômeno religioso, visto que existe a tendência de enxergar a pessoa religiosa como ingênua, a qual adere cegamente uma determinada doutrina, ou como um indivíduo cínico — que apenas finge crer nesse conjunto de crenças.

Ao levar em conta o contexto histórico das religiões e suas especificidades, nota-se como elas se modificaram de acordo com os processos de poder, as condições sociais e as práticas cotidianas. Diferentes civilizações se moldaram ao redor de elementos religiosos, por exemplo, dependendo da estrutura social da sociedade a entidade máxima teria uma característica mais forte.

Santos cita: “Para determinados pastores nômades, Deus era um bom pastor. Para populações de servos e nobres, ele era um rei. Depois, também era um justo juiz, um negociante que paga nossas dívidas, um comandante que envia seu exército para guerrear por nós, ou até mesmo um grande arquiteto”.

Religião ou crença

O pensamento simbólico é uma das características mais marcantes do ser humano e a crença faz parte disso, sendo uma projeção sobre algo que não se concretizou. O sociólogo dá um exemplo: “Você crê que o sol vai nascer amanhã de manhã, você não tem essa certeza. Enquanto o sol não nascer, é só uma crença de que ele vai nascer de novo e que vai se pôr no fim da tarde”.

Essa descrição realizada por ele é de uma crença e, ao entender esse conceito, observa-se que todo pensamento da humanidade está estruturado com base em diferentes crenças. Assim sendo, a religião também é pautada nisso, no entanto, de acordo com Santos, ela não detém o seu monopólio, ou seja, é possível crer sem possuir uma religião.

Influência no Ocidente 

Ao analisar os principais estudos e teorias de sociólogos e filósofos, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, livro de Max Weber, é notoriamente a mais famosa e conceituada obra que explora a relação da religião com o desenvolvimento da sociedade. Nesse livro, o autor explica como o protestantismo influenciou no surgimento e na disseminação do capitalismo no Ocidente, por meio da valorização do trabalho, do lucro e da acumulação de riqueza material — contrário ao catolicismo, que buscava a virtude e a penitência.

Porém, Renan dos Santos diz: “Às vezes, isso é colocado em uma chave evolucionista, como se o capitalismo só existisse como decorrência da ética protestante. Não é bem isso, Weber enfatiza a importância do papel das ideias no desenvolvimento do capitalismo moderno, ou seja, existe uma multicausalidade”.

O avanço e o funcionamento do capitalismo clássico — racional, empresarial e burguês — são favorecidos pela sistematização da conduta realizada pela religião, em especial pelo protestantismo. Contrário a isso, na chamada Idade Média a religião mais influente do Ocidente era a católica, a qual valorizava o estilo de vida mais simples ao invés da busca incessante por lucro.

Silas Fiorotti – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Durante a reforma protestante, período no qual o protestantismo foi idealizado e disputou poder com o catolicismo, existiam algumas diferenças capitais entre elas e justamente o que mais se destacava era a relação com o bem material. Enquanto a Igreja Católica pregava que a punição na Terra era um possível sinal de ida ao céu após a morte — e isso incluía a pobreza e o trabalho —, a Igreja Protestante defendia que possuir riquezas era um presságio, visto que o indivíduo já nasceu predestinado — o que elimina a sorte e o merecimento.

Sob outro prisma, Silas Fiorotti aponta para perspectivas que analisam a conexão das religiões com os tempos de crises e incertezas. “Por exemplo, a questão da laicidade nas sociedades ocidentais não é bem resolvida. Houve o surgimento do espírito moderno, com a teoria da ordem política secular e a ênfase na racionalidade e na burocracia”; no entanto, ele ressalta que a religião não ficou restrita à esfera religiosa e, por consequência, não é obtido o resultado que se espera dessa teoria.

Religiosidade contemporânea

Diferentemente de décadas anteriores, atualmente a religião não possui um papel central nas principais esferas políticas e institucionais da sociedade ocidental e há a expansão de um religioso desinstitucionalizado — menor ligação com a igreja. Entretanto, apesar de sua retirada da ordem política, ela continua sendo um componente dos discursos de poder — os quais determinam o verdadeiro e o falso.

Santos discorre sobre a expansão da Igreja Neopentecostal no Brasil, a qual ocorreu no momento em que a realidade social mudou no País, no início dos anos 2000, com o surgimento da classe média e o aumento do consumo. “Com isso, a oferta da prosperidade passa a parecer algo que faz mais sentido do que a ideia da pobreza como um destino. Até então, no modelo pentecostal clássico, o líder máximo era o ancião, que vivia uma vida austera. Na neopentecostal, passou a ser o bispo que alcançou o sucesso, que tem carro, que tem uma mansão”, desenvolve.

Essas religiões atuais possuem um sucesso que é explicado pelo fato de serem mais suscetíveis à redefinição de suas doutrinas, a fim de se adaptar às demandas do mundo contemporâneo consumista. Com isso, nota-se que há uma intensificação da concorrência religiosa, o que não é um sinal de fortalecimento da religião na vida social, mas, ao contrário disso, decorre da diminuição do poder de fidelização outrora visto. Esse trânsito só é possível por conta da relativização da religião, tornando-se uma instituição consumida e selecionada pelos indivíduos, diferentemente de quando ela era naturalizada, imponente e impositiva na sociedade.

Realidade brasileira

Fábio Miessi, professor fundador do Centro de Estudos da Religião e Políticas Públicas (Cerp) da USP, estuda os efeitos da religião na economia e nas políticas públicas. Nesse sentido, ele aponta que o objetivo principal das religiões e de seus líderes é maximizar o crescimento do número de fiéis e, consequentemente, sua influência perante o corpo social — o método mais utilizado para alcançar esse objetivo é a participação política.

Fabio Miessi Sanches – Fotot: Sites USP

O pesquisador afirma que existem evidências empíricas que mostram o sucesso desse método no Brasil, ao observar que em regiões onde o crescimento no número de evangélicos foi mais intenso houve maior crescimento no número de votos para candidatos ligados a essas igrejas. Isso ocorre devido aos líderes religiosos, que fazem campanha para esses políticos.

De maneira indireta, segundo ele, as religiões alteram as preferências das pessoas e, por consequência, elas votam naqueles que mais se aproximam dessas opiniões. Como exemplo, é citada a relação existente entre o protestantismo e o liberalismo, assim como constatado na Suíça. Isto posto, nota-se que o aumento da participação de protestantes em diferentes esferas de poder afeta diretamente o viés das instituições, de suas leis e das políticas públicas.

Sob esse ponto de vista, Miessi finaliza: “As igrejas apoiam políticos ligados a elas. Uma vez eleitos, esses políticos defendem agendas alinhadas com objetivos das igrejas, por exemplo, isenções de impostos para essas instituições. Essa agenda, por outro lado, nem sempre está alinhada com o crescimento econômico do País, visto que esses recursos que o governo deixa de arrecadar com isenções poderiam ser utilizados para a educação”.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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