A ética é mais exigente que a lei

Renato Janine explica que há condutas que são legais, mas que nem por isso são corretas

 16/08/2023 - Publicado há 9 meses
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O crime é uma infração à lei. A lei estabelece quais são as condutas corretas e quais são as condutas incorretas e, dentre as incorretas, aquelas particularmente graves que a gente chama de crimes. Você pode fazer coisas que são erradas do ponto de vista legal e sofrer apenas uma multa ou deixar de desfrutar de alguma vantagem. Nós temos todo um leque de questões que vão desde algo que não é crime até o que é uma ofensa leve, como uma contravenção, geralmente punida apenas com multa, não com detenção.

Tem-se um crime quando existe uma infração clara a valores importantes celebrados pela sociedade, dos quais os principais são o assassinato e o furto, o roubo, e hoje, cada vez mais, o estupro. Houve um tempo no passado que adultério fazia parte desse pacote, mas o adultério, embora a nossa sociedade não propriamente o valorize ou isente, deixou de ser, na maior parte dos países, criminalizado.

A ética é mais exigente que a lei. Isso significa que há condutas que são legais, mas que nem por isso são decentes, corretas. O próprio adultério é um desses casos. Em outras palavras, você está com uma pessoa,  a pessoa mais íntima de você no mundo, e traí-la não é uma coisa digna eticamente,  ao passo que o Estado não pode entrar na relação pessoal, amorosa de um casal para puni-lo.

Por outro lado, você não quer saber, no caso da lei, se a pessoa a respeitou porque tem medo da punição, ou porque acredita na lei, ou porque acredita que a lei, mesmo sendo incorreta, obedece ao que se impõe a toda a sociedade. Portanto, tem uma validade universal e o indivíduo não poderia sozinho desrespeitá-la. Então, há uma diferença: eu posso respeitar a lei, cumprir a lei porque eu acho que ela é justa, posso cumprir a lei porque ela se impõe a todos, ou posso cumprir a lei simplesmente porque eu tenho medo do castigo. Ter medo do castigo não é nada ético. No entanto, para o funcionamento adequado da sociedade, basta que você obedeça a lei para que tudo corra de uma forma socialmente mais aceitável.

O grande exemplo é o trânsito. Não existe nada de imoral em você atravessar um sinal vermelho dependendo do horário – na madrugada, olhando bem, com cuidado, pode ser até que seja mais prudente, mas é errado, é crime. Agora, a questão fundamental é: “Estou cumprindo a lei de trânsito porque tenho medo da punição,  porque tenho medo dos efeitos, por exemplo, se o meu carro levar uma batida, ou porque acho justo haver um fluxo para uma direção, um fluxo para outro?”. É  justo que na sociedade uns desfrutem de espaço e outros também. A lei de trânsito, nesse sentido, é altamente ética, porque ela estabelece uma certa igualdade entre as pessoas, uma igualdade entre todos que têm carro ou mesmo como pedestres que atravessam a rua no momento oportuno.

A punição legal pode ser o crime,  privação de liberdade, pode ser a multa, pode ser até, em certos casos, o confisco do bem. Mas a punição ética existe?  Essa é uma questão interessante, porque geralmente a falha ética é punida simplesmente pelo remorso da pessoa. Dificilmente é uma punição externa e é isso que faz a grandeza da ética, ela tem uma punição muito leve.

Não é verdade “que aqui se faz, aqui se paga”. A gente ouve muito isso, muita gente acredita que sim, que aqui mesmo vai se pagar ou que na outra vida vai se pagar – indo talvez para o inferno. Não temos nenhuma certeza disso. Agora, o que é fato é o seguinte:  a decência , a correção, a ética devem ser o prêmios de si próprios. Você sentir que agiu bem, eu acho que já é suficiente como recompensa por ter sido ético. A velha história de dormir tranquilamente,  de colocar a cabeça no travesseiro e estar em paz, a  verdade é que o “homem  ruim dorme bem”, como diz um filme do cineasta japonês Akira Kurosawa.  Mas, enfim, não podemos confundir ética com recompensas. Ética não tem recompensas externas.


Ética e Política
A coluna Ética e Política, com o professor Renato Janine Ribeiro, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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