Uma defensora incansável do ensino superior

A professora Eunice Durham, que morreu no último dia 19, soube como poucos unir teoria e prática em defesa da educação no Brasil

 20/07/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 26/07/2022 às 17:05
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Eunice Durham era antropóloga e cientista social – Foto: Cecília Bastos/USP

Trata-se de uma obviedade mas, nesses últimos anos de estranhezas e estranhamentos, é sempre importante repetir: uma nação cresce e se estrutura baseada, antes de mais nada, na Educação – assim mesmo, com maiúscula. Mas a Educação tem sido atacada sistematicamente, desvalorizada, relativizada ao ponto da esqualidez por parte de órgãos e atores sociais e políticos que deveriam justamente fazer o contrário. Essa é uma realidade. Mas há outra, aquela em que pessoas levantam a voz e estruturam ideias para defender bandeira educacional no Brasil. Isso, mesmo contra o vozerio aturdido que teima em apontar o dedo inquisidor e virulento contra instituições de ensino, principalmente universidades públicas. Uma das vozes mais importantes e respeitadas na defesa da Educação como formadora de cidadãos com habilidades múltiplas e de uma nação pensante era a da antropóloga e educadora Eunice Ribeiro Durham, que morreu aos 90 anos no último dia 19. Uma das principais marcas em sua trajetória de décadas em prol da Educação era a defesa ferrenha pela democratização do acesso ao ensino superior.

 

“A morte da professora Eunice Durham traz uma dor enorme, sobretudo em tempos em que o saber e o conhecimento sofrem ataques tão violentos em nosso País”, afirmou, em nota oficial, o reitor da USP Carlos Gilberto Carlotti Junior. “Ela soube defender a ciência e o ensino com elegância e vigor e foi um dos nomes mais importantes da Universidade, na pesquisa antropológica e na gestão do ensino superior, assumindo importantes responsabilidades à frente do MEC e do Conselho Estadual de Educação”, afirma Carlotti. A Reitoria da USP decretou luto oficial por três dias em homenagem à professora Eunice.

Eunice Durham construiu toda sua longa carreira acadêmica na Universidade de São Paulo – era antropóloga, cientista política e Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, título recebido há duas décadas. Foi na FFLCH que ela defendeu sua dissertação de mestrado sobre imigração italiana – orientada por Egon Schaden –, experiência que a levaria, no começo dos anos 1970, a ser orientadora de doutorado da futura primeira-dama Ruth Cardoso, cuja tese estudava a imigração japonesa. Já seu doutorado, também sob orientação de Schaden, deu atenção à migração rural urbana. A livre-docência, por fim, foi sobre o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, autor por quem se apaixonou lendo, ainda jovem, um livro na biblioteca do pai. 

“A morte da professora Eunice Durham traz uma dor enorme, sobretudo em tempos em que o saber e o conhecimento sofrem ataques tão violentos em nosso País”

Foi no início desse percurso acadêmico, entre os anos 1950 e 1960, que Eunice estreitou sua relação intelectual e de amizade com o também antropólogo e criador da UnB Darcy Ribeiro. “O Darcy Ribeiro montou uma enorme pesquisa sobre urbanização e as transformações da sociedade brasileira contemporânea e me convidou a participar. Achei uma falta de responsabilidade do Darcy porque eu era recém-formada. O mestrado nem estava escrito ainda. Mas ele era uma pessoa interessante e sedutora. Me dizia: ‘Pode deixar. Eu oriento você’. Jamais fui orientada. Ele me deu a parte da migração rural-urbana, que se tornaria minha tese de doutorado”, relembrou a professora à Revista Pesquisa Fapesp há sete anos (leia a íntegra da entrevista aqui).

Ela também foi pesquisadora e membro do Conselho do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP desde 2005 e por muitos anos dirigiu e inspirou a vida intelectual e acadêmica do núcleo. Antes, ela ajudou a criar o Nupes – Núcleo de Pesquisa de Ensino Superior da USP, que coordenou de 1989 a 2005. “O Nupes foi uma nova forma de fazer pesquisa sobre ensino superior, uma pesquisa menos ideológica e mais baseada no levantamento e análise de fatos e informações levando em consideração o que ocorria no resto do mundo”, contou ela à Revista Pesquisa Fapesp. “Acho que o Nupes fez um bom trabalho. A direção do Simon Schwartzman foi essencial. Deixamos de falar em universidade para falar de sistema de ensino superior”.

Foi essa postura de pensar a universidade e o ensino superior para além de parâmetros preestabelecidos ou fórmulas intocáveis, que fez Eunice ser tão respeitada. Logo após a notícia de sua morte, o NUPPs reconheceu justamente essa postura da professora. “A professora Eunice foi uma voz poderosa em defesa da ciência e da pesquisa. Além de sua contribuição intelectual à antropologia brasileira, o NUPPs lembra em especial seu legado para a área que explora as mudanças por que passa o ensino superior à medida que responde às novas demandas da sociedade do conhecimento”, registrou o núcleo em nota de pesar. “Sua produção intelectual nessa área é ainda mais atual quando consideramos os enormes desafios por que passa a educação no Brasil nos dias de hoje.”

Teoria e prática em prol do ensino superior

Eunice Durham foi uma pesquisadora prestigiada e uma professora extremamente respeitada – e  a sala de aula era seu habitat natural, apesar de a pesquisa ter lhe dado maior reconhecimento intelectual, como ela mesmo afirmou. Esse prazer de ensinar levou-a a declarar, ao receber o título de Professora Emérita, que “a docência foi sempre minha verdadeira vocação: a tarefa de formar estudantes – não apenas a de lhes ensinar antropologia, mas a de procurar fazer com que a utilizassem para alargar sua visão de mundo, para assumir uma perspectiva crítica em relação à sociedade e a si mesmos”.

Tenho muitas lembranças da professora, da qual fui aluna, admiradora, usufruindo da sua convivência, vendo-a como um modelo de mulher acadêmica, que defende posições, mas que se abria ao debate e ouvia as novas gerações. Era elegante, visível no apuro e sobriedade dos seus trajes muito bem compostos; era mãe de Alan, hoje professor do Instituto de Matemática e Estatística – IME –; interessava-se por nós, alunas, e com a nossa condição de mães”, recordou em artigo para o Jornal da USP a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, ex-diretora da FFLCH e vice-reitora da USP. “Eunice era uma mulher pioneira e multifacetada, haja vista a trajetória inusual para a sua geração. Nesse sentido, tornou-se referência para outras mulheres na academia, seja como pesquisadora e intelectual de alto nível, seja na seara das políticas científicas e dos assuntos públicos, seja ainda no pioneirismo feminino em um ambiente adverso. Jamais se deteve diante da necessidade de denunciar iniquidades, violação de direitos e ataques à democracia”, afirma a vice-reitora (leia a íntegra do artigo aqui).

Mas, para além da sala de aula, a professora Eunice Durham soube, como poucos, unir a teoria e a prática em prol do ensino superior e mais – em prol da própria Universidade e de suas estruturas política e acadêmica, muitas vezes questionando-as, o que lhe rendeu algumas resistências na própria academia. “Eunice tinha posições firmes e não poucas vezes polêmicas em relação às políticas de pós-graduação, de educação superior e de ciência no Brasil”, afirma nota de pesar da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da qual Eunice Durham foi vice-presidente entre 1989 e 1991.

Já entre 1967 e 1968 ela, que nunca se considerou marxista – “o marxismo não serve muito para a antropologia”, declarou certa vez –, alertava seus alunos sobre os riscos da radicalização. “Antes de ir para a ciência política, eu já havia começado a me interessar pela questão da política estudantil e universitária. Toda a luta dos estudantes e professores menos tradicionalistas girava em função da necessidade de reformar a universidade. Apoiei os estudantes, mas achava que eles estavam indo por um caminho em que não ia haver vitória nenhuma, que era o de fazer a revolução socialista. O movimento ia acabar, como acabou, destruído porque os estudantes não tinham apoio popular nem apoio político para fazer a revolução”, afirmou ela à Revista Pesquisa Fapesp.

“Tenho muitas lembranças da professora, da qual fui aluna, admiradora, usufruindo da sua convivência, vendo-a como um modelo de mulher acadêmica, que defende posições, mas que se abria ao debate e ouvia as novas gerações”

Para longe da revolução apregoada pelos estudantes, Eunice acabou enveredando, a partir dos anos 1980, por um caminho que alicerçou muitas de suas ideias sobre o ensino superior. Na USP, ela atuou para a institucionalização do trabalho de extensão universitária na Comissão Especial da Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais (Cecae) da Reitoria, entre 1988 e 1989, no mesmo período em que passava a atuar também como assessora especial da Reitoria para Políticas Universitárias, entre 1987 e 1989. Além disso, foi presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ocupou as secretarias nacionais do Ensino Superior em 1991 e 1992 e de Educação Superior, de 1995 a 1997, no Ministério da Educação. Também fez parte do Conselho Nacional de Educação de 1997 a 2001. “[No MEC] Adquiri uma visão de todo o sistema que eu não tinha da perspectiva das ciências sociais. Tive muito contato com os cientistas, os médicos, os engenheiros. Talvez o melhor trabalho que eu tenha feito na vida foi dirigir a Capes”, revelou ela à Revista Pesquisa Fapesp.

“Eunice Durham era uma intelectual na acepção da palavra. Pensava o Brasil e traduzia para a opinião pública os alicerces desse seu pensamento. Do ponto de vista da educação, que é o campo em que eu a conheço melhor, estruturou, no tempo que esteve à frente da Capes, uma política de ensino superior”, afirma a professora Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da USP (FE-USP). “Tinha inegavelmente uma inequívoca coerência entre seu pensamento teórico e suas estratégias como figura pública e atuante no debate pedagógico sobre ensino superior. Foi uma personalidade marcante e defendeu sempre de maneira apaixonada as ideias em que acreditava.”

A vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda reitera essa visão: “Eunice conciliou à docência, a pesquisa inovadora, a ação institucional e pública. Em todos os campos de atuação primou-se pela excelência e pelo caráter marcante, típico de personalidades que jamais nos esqueceremos, manifesto na defesa firme das suas ideias”.

Depoimentos de vida e de academia

Veja nos três vídeos abaixo entrevistas da professora Eunice Durham sobre sua vida e sobre sua trajetória acadêmica. No vídeo sobre 1968, ela pontua depoimentos de colegas da USP que vivenciaram os anos de chumbo – Fernando Henrique Cardoso, Dalmo de Abreu Dallari, Jean-Claude Bernardet e Carlos Guilherme Motta. 


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