O uso da figura da feiticeira nos teatros como símbolo de luta e resistência feminina

Pesquisa da USP compara as diferentes construções da feiticeira no teatro português nos anos 1960 e 2006

 09/01/2024 - Publicado há 4 meses
Tese de doutorado analisou a construção da feiticeira em quatro obras dramáticas portuguesas escritas em períodos históricos diferentes – Foto: Reprodução/Cinemateca Portuguesa/fflch

No passado, as feiticeiras eram consideradas uma ameaça para a sociedade, sendo perseguidas e queimadas na fogueira. A partir dos anos 1960, contudo, essa figura passou a ser explorada como um símbolo de força feminina, em nações como França, Estados Unidos, Reino Unido, e Portugal, país no qual a imagem da feiticeira foi levada para o teatro. Para além de uma dualidade de negativa ou positiva, a figura da feiticeira no teatro português reflete a situação da mulher na sociedade portuguesa, ora se tornando vítima, ora ocupando o espaço de resistente às pressões sociais.

Em sua tese de doutorado, Robin Alexander Driver, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisou a construção da feiticeira em quatro obras dramáticas portuguesas escritas em períodos históricos diferentes: “Duas foram publicadas em 1959 e as outras duas em 2006. Todas falam da figura da feiticeira como espelho da mulher portuguesa, ora como vítima, ora como figura de empoderamento”, comenta Driver.

A tese A feiticeira como espelho da condição feminina no teatro português moderno e contemporâneo foi defendida em setembro de 2023, no programa de pós-graduação em Literatura Portuguesa da FFLCH, e teve orientação da professora Flavia Maria Ferraz Corradin.

Mulheres livres são uma ameaça

Em 1959, Portugal estava enfrentando o Estado Novo, período marcado pelo autoritarismo, nacionalismo, tradicionalismo e corporativismo. Assim como ocorreu no regime militar do Brasil, a livre manifestação de pensamentos era vista como uma ameaça pelo governo.

É nesse contexto sociopolítico que foi escrito o poema dramático Comunicação, de Natália Correia. “Nessa obra, a personagem principal, a Feiticeira Cotovia, é realmente uma feiticeira. Mas, ao mesmo tempo, ela é uma espécie de personagem metafórica, porque ela é feiticeira e poetisa. Então, na verdade, sua magia é a poesia”, aponta Driver.

Robin Alexander Driver – Foto: Arquivo pessoal

Em suas poesias, a Feiticeira Cotovia faz críticas às regras sociais impostas às mulheres e defende, entre outras coisas, a liberdade sexual de todas, sendo condenada à fogueira por três figuras: o Padre, o Patriota e a Solteirona. Para além de críticas contra os padrões impostos ao gênero feminino, a obra de Natália realiza uma crítica ao regime autoritário do Estado Novo. “A falta de liberdade sexual das mulheres é apenas uma faceta da repressão do Estado Novo. E as três figuras que acusam a feiticeira, o Padre, o Militar e a Solteirona, representam as bases do Estado Novo, respectivamente, Deus, pátria e família”, explica Driver.

Enquanto é queimada pela sua comunidade, a Feiticeira Cotovia declama um novo poema, sobre o qual Driver comenta: “Dessa vez, ela anuncia uma nova era. Ela vai morrer, mas a sua poesia carregada de críticas, que é sua magia, vai sobreviver, instaurando uma nova época”. Essa nova época, de acordo com o pesquisador, é um governo sem repressão do Estado Novo e uma nova ordem social que dá liberdade às mulheres.

Diferente da primeira, na segunda obra, O Crime de Aldeia Velha, escrita por Bernardo Santareno, a personagem principal Joana não é, de fato, uma feiticeira. Driver explica: “Temos uma menina que é acusada de estar possuída por um mal por não corresponder às normas sociais, sendo também morta.” Assim como a Feiticeira Cotovia, a morte de Joana reflete as pressões que a sociedade portuguesa colocava sobre os comportamentos que as mulheres deveriam seguir.

Feiticeiras como um símbolo de força

Em 2006, Portugal, assim como outros países europeus, estava enfrentando ondas de movimentos feministas a favor do aborto, que seria legalizado no país em 2007. Além das ruas, as manifestações invadiram a arte. Dessa vez, a imagem da feiticeira ganhou um novo significado no teatro português: agora ela era o retrato não só de mulheres resistentes, que buscavam a  autonomia de seus corpos, como também de mulheres unidas.

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Em Feiticeiras, a autora, Maria Teresa Horta, explora a questão da sororidade que as mulheres construíram durante esse período. “Essa obra é um poema dramático que foi escrito para ser encenado como ópera. Então temos um coral composto por um grupo de mulheres. Diferente das obras de 1959, nesse poema a feiticeira não está sozinha. Pelo contrário, essas feiticeiras criam uma comunidade de apoio, refletindo a união dos movimentos feministas”, explica Driver. Na ópera, todas elas são queimadas, mas logo em seguida reencarnam – uma  metáfora à qual  a autora recorreu para mostrar que, apesar da perseguição social, as mulheres portuguesas insistiram em suas lutas.

Enquanto em Feiticeiras, Maria Teresa recorre à figura da feiticeira como símbolo para representar a luta de todas as mulheres. Em Desmesura, a autora Hélia Correia propõe analisar as tensões entre mulheres de diferentes origens sociais. “Nesta peça, temos uma feiticeira que compartilha uma casa com três escravas: duas gregas, mãe e filha, e uma africana. A situação nos permite conhecer um pouco dos diferentes tipos de opressão enfrentados por mulheres com vivências diversas”, aponta o pesquisador.

Escrita na terceira onda do feminismo em Portugal, a peça Desmesura faz uma provocação sobre as especificidades das mulheres de diferentes raças que os movimentos feministas portugueses não incluíam. “Na obra, temos essa figura da feiticeira como uma vingadora do patriarcado e, portanto, apta a lutar. Mas essa não era uma perspectiva para todas as mulheres. Hélia defende que a emancipação da mulher deve ser uma questão muito mais plural”. Essa pluralidade, de acordo com Driver, é a possibilidade de dar espaço para as vozes, demandas e direitos de todas as mulheres do país.

* Texto de Lívia Lemos, da Divulgação Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.


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