“Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”, afirmou Theodor Adorno. Bárbaro ou não, foi o que Primo Levi (1919-1987) fez, após sobreviver onze meses nesse campo de concentração durante o regime nazista. O escritor usou das palavras em contos, poemas e novelas para relatar sua experiência, ainda que a considerassem impossível de se descrever, e deixou um legado de contribuições e inspirações para os estudos humanísticos até a atualidade. Com um olhar sobre as obras de Levi, o Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP lança uma nova edição da revista Literatura e Sociedade. A publicação recebe o nome do escritor homenageado pelos 100 anos e reúne quatro artigos que analisam suas obras, além de outros seis, que paralelamente trazem outras discussões críticas.
Em Os afogados e os sobreviventes: os delitos, publicada em 1986, Levi reconstitui as lembranças sobre o cotidiano hostil no campo de Auschwitz e reflete sobre as condições do Holocausto. A partir dessa obra, por sua vez, Pedro Spinola Pereira Caldas, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), reflete o conceito de evento no artigo intitulado O evento limite em Primo Levi: uma leitura de Os afogados e os sobreviventes. Spinola se baseia no historiador Saul Friedländer para entender o evento limite como “o evento capaz de testar as categorias tradicionais de conhecimento e representação” e o direciona para as memórias de Auschwitz.
“Pretendo examinar aqui as recordações de experiências extremas, de ofensas sofridas ou impingidas.”
“Como caso limite da deformação da recordação há a sua supressão.”
Essas são algumas frases extraídas por Spinola, em sua releitura da obra de Levi, na qual observa a presença de termos ligados à ideia de limite e as usa para estabelecer análises na relação do limite de falar com, para, pelo e do outro.
Ainda em diálogo com outros autores, outra proposta de análise das obras de Levi é vista em Figurações de sobrevivência em Primo Levi, de Andréa Borges Leão e Antonio Cristian Saraiva Paiva, ambos da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (UFC). Desta vez, o livro em destaque é A tabela periódica, no qual Primo Levi, que também era químico, desenvolve sua narrativa sobre a experiência em Auschwitz em metáfora com os elementos químicos da tabela periódica, organizada pelo também químico Dmitri Mendeleev. Para abordar a construção do autor sob o olhar da sociologia, o sociólogo alemão Norbert Elias é convidado a desvelar as figurações de sobrevivência, assim como Michel Foucault e tantos outros pensadores sociais.
“O modelo de interpretação construído por Elias permite o estabelecimento de um amplo e detalhado quadro comparativo entre sociedades distantes no tempo e no espaço, levando-nos a indagar as possibilidades de equivalências entre diferentes processos de civilização. O que nos vincula, ainda que remotamente, às formalidades da existência, aos padrões do convívio social dos cortesãos franceses, ingleses e alemães, nos séculos anteriores aos rumos descritos pelas mudanças sociais e psíquicas de longo prazo”, afirmam Andréa e Saraiva.
Mais distante das contribuições de Levi, na seção Rodapé, Edinael Sanches Rocha recorre ao escritor brasileiro João Guimarães Rosa, mais precisamente à novela Buriti, para extrair a relação da narrativa com a cultura tradicional dos povos originários da América. Em sua análise, o autor analisa as referências ao Curupira, personagem característico do folclore brasileiro, contidas na obra de Rosa e destaca a relação do enredo com os mitos de criação do mundo comuns aos nativos das Américas. “As poucas reflexões feitas aqui, nascidas do cotejo da obra rosiana com as culturas nativas, hábitos e mitologias próprios, é apenas um sinal do quanto o texto do autor mineiro ainda pode nos (re)velar”, considera Sanches.
Ainda nessa seção, o artigo Bardos, penas e armas: a produção literária na imprensa afro-brasileira, de Petrônio Domingues e Ruan Levy Andrade Reis, explora os textos literários publicanos na imprensa entendida como negra no Brasil entre os anos 1915 e 1931, com enfoque no testemunho histórico impresso nos periódicos da época, que se destacavam pelo espaço incomum destinado a poemas, contos e novelas. O estudo mostra figuras famosas no movimento negro e dá luz aos seus trabalhos literários impressos em papel. Porém, não somente sob análise da trajetória e estilo de negros notórios como José do Patrocínio e Luiz Gama, “o artigo é relevante por tratar de poetas pouco conhecidos e invisibilizados no sistema literário brasileiro, analisando suas trajetórias e estilos, e indexando informações sobre a imprensa negra como suporte e arquivo para textos literários”, apontam os pesquisadores no que informa a função de enunciação, visibilidade e no suporte para produção intelectual negra nos jornais.
Segundo a autora, essa imprensa desempenhou um papel de grande importância como polo de comunicação e aglutinação de intelectuais afro-brasileiros. “A imprensa negra serviu de canal divulgador de ideias não só no campo jornalístico (‘noticioso’), mas também literário”, afirmam.
A revista ainda conta com uma entrevista realizada com o professor, tradutor e pesquisador francês Michel Riaudel em junho de 2019, concedida a Raquel Machado Galvão, sobre a obra da poetisa Ana Cristina Cesar, além da resenha do livro A representação do espaço e do poder em Mário de Carvalho: uma apologia da subversão, pela pesquisadora Márcia Manir Miguel Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).