Manuscrito de Isaías descoberto em Qumram, exposto no Museu de Israel – Foto: KOREphotos via Flickr – CC
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Em 1947, dois beduínos árabes, percorrendo a região montanhosa e árida de Hirbet Qumran, no deserto da Judeia, a 12 quilômetros ao sul de Jericó, em Israel, entraram numa das várias cavernas do lugar e ali se depararam com vasos longos e cilíndricos, que continham manuscritos muito antigos, alguns em estado fragmentário. Um desses documentos – identificado mais tarde – era uma cópia do livro bíblico de Isaías produzida entre 125 e 100 antes de Cristo.
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O achado dos beduínos representou a maior conquista da arqueologia do século 20. Atraídos pela descoberta inicial, pesquisadores vasculharam a área, localizada na região noroeste do Mar Morto, e – ao longo de nove anos, entre 1947 e 1956 – trouxeram à luz 930 manuscritos que estavam guardados em 11 cavernas de Qumran. Desse total, 210 reproduzem livros da Bíblia hebraica – que os cristãos chamam de Antigo Testamento -, principalmente os Salmos (36 cópias), o Deuteronômio (32) e o Gênesis (23). Entre os manuscritos não bíblicos estavam o Manual de Disciplina ou Regra da Comunidade, que descreve as práticas e rituais da seita que produziu os manuscritos, os Hinos de Ações de Graças e o Documento de Damasco, outro texto que retrata o cotidiano da seita. Escritos em sua maior parte em hebraico – mas também em aramaico e em grego -, os documentos foram datados de entre 250 antes de Cristo e 68 depois de Cristo.
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Setenta anos depois da façanha involuntária dos dois beduínos, pesquisadores de várias partes do mundo ainda discutem o significado da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, como ficaram mundialmente conhecidos os textos encontrados nas cavernas de Qumran. No Brasil, o debate foi enriquecido com o lançamento, em setembro, do livro Manuscritos do Mar Morto – 70 Anos da Descoberta, organizado por Fernando Mattiolli Vieira e publicado pela Editora Humanitas, ligada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Com 220 páginas, o livro traz seis artigos de especialistas do Brasil e do exterior sobre diferentes aspectos dos manuscritos – desde uma introdução geral aos documentos de Qumran e a produção bibliográfica brasileira sobre o tema até uma análise da vida da mulher na seita que produziu os textos. No final, a obra apresenta ainda um apêndice com os títulos das matérias sobre os Manuscritos do Mar Morto publicadas entre 1956 e 2017 nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo. “Os assuntos encontrados neste livro estão entre os mais importantes já discutidos em nível mundial”, escreve na introdução o organizador Fernando Vieira, que é doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor da Universidade de Pernambuco.
Atualmente, os manuscritos encontrados em Qumran estão guardados no Santuário do Livro, uma ala do Museu de Israel, em Jerusalém. Boa parte deles foi publicada entre 1955 e 2009 pela Oxford University Press, na série Discoveries in the Judean Desert.
Essênios?
Até hoje há divergências em torno da identidade da comunidade de Qumran, informa o pesquisador Edson de Faria Francisco, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), no artigo “Manuscritos de Qumran: Introdução Geral”, publicado em Manuscritos do Mar Morto. Para uma parcela considerável dos pesquisadores, esse grupo poderia ser identificado com os essênios, um dos vários ramos do judaísmo que floresceram entre o século 2 antes de Cristo e os primeiros séculos da era cristã – entre eles, os fariseus, os saduceus e os zelotes. Escritores antigos como Fílon de Alexandria, Flávio Josefo e Plínio, o Velho citam esse grupo, mas não há consenso entre os especialistas sobre as informações fornecidas por eles, afirma Francisco. “A identificação da comunidade de Qumran com os essênios continua em aberto até o presente momento.”
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Apesar das dúvidas, a “hipótese essênia” tem resistido ao tempo e continua a ser a interpretação que mais bem explica as evidências, segundo o pesquisador Dennis Mizzi, da Universidade de Malta, que assina o artigo “Qumran aos Setenta”, também publicado no livro lançado pela Editora Humanitas. “É muito improvável que novos dados venham a minar seriamente essa interpretação – o que não quer dizer que ela é perfeita ou que não há espaço para modificações ou refinamentos.”
Mas as incertezas não se limitam à identidade do grupo que legou os manuscritos. Em seu artigo, Mizzi cita várias outras questões que ainda constituem enigmas. “Setenta anos depois, o trabalho mal começou”, escreve. Por exemplo, há dúvidas sobre a cronologia e o uso dos edifícios construídos a partir do século 8 antes de Cristo no topo do platô que dá vista para a costa noroeste do Mar Morto – que a princípio não foram associados aos manuscritos -, hoje em ruínas. Existem teorias que consideram Qumran não apenas um mero assentamento sectário essênio, mas um espaço de culto ou um centro de purificação ritual ou até mesmo um centro de produção de pergaminhos para a composição de manuscritos.
O tamanho da população em Qumran também é motivo de disputa. Dependendo da teoria adotada, o lugar pode ter abrigado entre dez e cem pessoas. Há dúvidas se essa população vivia no assentamento ou nas cavernas. Mizzi elenca ainda outros mistérios: “Quando os manuscritos chegaram em Qumram? Quem os levou para lá? Por que foram depositados em cavernas e quando exatamente? Qumran era uma ‘biblioteca’? Todos os manuscritos foram usados (ou lidos) no assentamento? Alguns vieram de outros ‘assentamentos sectários’ relacionados? Essas são algumas das questões não resolvidas, e o trabalho futuro da arqueologia dos manuscritos poderá clarear alguns deles.”
Para Mizzi, as investigações sobre os Manuscritos do Mar Morto deveriam estar mais integradas com a pesquisa em Antiguidade clássica, e não ficar restritas aos campos do judaísmo antigo e dos estudos bíblicos, como ocorre atualmente. “Qumran era, essencialmente, parte do mundo mediterrâneo”, destaca o pesquisador. “Nesse sentido, é também um sítio clássico e, por isso, sua interpretação deveria ser contextualizada por tal base.”
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O artigo sobre a vida da mulher na comunidade de Qumran é de autoria da pesquisadora Clarisse Ferreira da Silva, pós-doutora pela USP, uma das maiores especialistas brasileiras nos Manuscritos do Mar Morto. Analisando o Documento de Damasco, Clarisse notou traços do cotidiano das mulheres naquela comunidade. Segundo ela, a mulher permanecia sob a autoridade de seu pai até o dia de seu casamento. “Ao pai cabia assegurar a ela um noivo adequado e ao mesmo tempo não esconder seus defeitos ao potencial marido, assim evitando uma maldição e talvez também um divórcio”, escreve Clarisse. “Ela, aparentemente, não tinha qualquer papel no processo dos arranjos do casamento. Homens, por sua vez, tinham a possibilidade, ou a obrigação talvez, de procurar o líder comunal para o mesmo fim. Uma vez casados, as mulheres transitavam da autoridade do pai para a do marido. Poligamia era interditada, mas não o divórcio ou o segundo casamento. Também não era obrigatório casar apenas com mulheres provindas de famílias vinculadas à seita.”
Outros artigos publicados em Os Manuscritos do Mar Morto são “Demonologia e teodiceia na apocalíptica judaica e em Qumran”, de César Carbullanca Núñez, da Universidade Católica de Maule, no Chile, e “Ler a Bíblia hebraica aos 70 anos do descobrimento dos Manuscritos do Mar Morto”, de Florentino García Martínez, da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica.
Os Manuscritos do Mar Morto – 70 Anos da Descoberta, de Fernando Mattiolli Vieira (organizador), Editora Humanitas, 220 páginas, R$ 35,00.
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